O cristianismo, com seus prodígios e horrores no aspecto terreno, está acabando.
É triste, mesmo para os não crentes, ver a força motriz da civilização ocidental, se apagar.
E mais triste ainda para aqueles que continuam a acreditar na mensagem mais poderosa da história ver o declínio refletido nos embates entre o que se convencionou chamar de tradicionalistas e reformistas.
Os dois termos são altamente simplificados. Uma prova: o conflito entre dois tradicionalistas a respeito de um livro assinado por ambos.
Um deles, ninguém menos que Bento XVI, o papa emérito cuja abdicação continua sem uma explicação satisfatória.
Recolhido ao silêncio – quase literal pois sua voz virou um sussurro – e a uma cadeira de rodas, Joseph Ratzinger ficou mais popular depois da abdicação.
Isso entre os tradicionalistas, uma corrente que vai desde extremistas desequilibrados que consideram o argentino Jorge Bergoglio a encarnação do antipapa até teólogos e acadêmicos com argumentos muito bem fundamentados contra iniciativas autodestrutivas dos reformistas.
A que está no centro das atenções no momento é o celibato dos sacerdotes.
A proposta da ordenação de homens casados feita no Sínodo da Amazônia foi quase tão chocante quanto as manifestações bizarras de culto à Pachamama, entidade andina representada por uma mulher grávida.
A defesa do celibato foi assumida, num livro intitulado Do Fundos de Nossos Corações, por Robert Sarah, um cardeal importante e articulado, prefeito da Congregação do Divino Culto e da Disciplina dos Sacramentos, respeitado entre os tradicionalistas de cabeça mais fria.
Como acontece com outros religiosos cristãos da África, ele é conservador em matéria de moralidade sexual e os mandamentos sobre a vida sacerdotal. Bispos da Igreja Anglicana na África, por exemplo, rejeitaram o sínodo que aprovou a ordenação de mulheres.
O bafafá com o livro do cardeal Sarah envolveu uma colaboração do papa aposentado.
O representante mais próximo de Bento XVI , o arcebispo George Gänswein, disse que o nome dele deveria ser retirado como co-autor porque sua colaboração com o livro era limitada a um artigo.
Sarah estrilou, mostrou correspondência indicando o contrário e todo mundo acabou ficando mal na foto.
Mas a questão do celibato não só permanece como vai crescer. Deve constar dos “novos caminhos” que o gaúcho Cláudio Hummes, ex-arcebispo de São Paulo, está incluindo no documento final sobre o sínodo.
O argumento usado para a ordenação de homens casados é a falta de padres na imensidão amazônica.
Nem a mais inocente das pedras da Praça de São Pedro acredita que não seja um primeiro passo para a gradual introdução do fim do celibato.
De forma geral, é considerada uma atitude progressista acabar com a exigência de que os sacerdotes consagrem a vida a Deus e abram mão, em nome de um apelo espiritual superior, dos apelos da carne.
Também existem argumentos mais pé no chão: os tantos casos de abuso de crianças e jovens, tão absurdamente contrários a todos os ensinamentos da Igreja, talvez diminuíssem. Sem falar nos tantos e conhecidos casos de religiosos que têm “esposas” não oficiais.
Curiosamente, estes argumentos só são usados no caso da Igreja Católica. Não existem campanhas para que monges budistas desistam do celibato.
Imaginar uma senhora Dalai Lama encantando milionários americanos deslumbrados? Nem pensar.
As igrejas protestantes resolveram a questão com o cisma luterano, há 500 anos.
As ortodoxas, da linhagem de um cisma como o dobro da idade, têm uma divisão interessante: os padres seculares casam-se, mas a hierarquia de bispos e patriarcas vem dos que se dedicam à vida monacal e ao celibato.
O fim do celibato envolve questões de alto teor teológico e espiritual, mas também dúvidas do dia a dia.
Um padre casado poderia ouvir em confissão sua própria mulher? Ou seus filhos? Ou genros e noras? E ainda por cima absolvê-los?
Se em algum momento o sacramento da ordem e o do matrimônio entrassem em conflito, qual teria prioridade?
E já que podem se casar, padres liberados do celibato poderiam também se separar?
E quem pagaria o plano de saúde da família?
“Existe um elo ontológico-sacerdotal entre sacerdócio e celibato”, escreveu o cardeal Sarah no livro que criou mais uma crise no Vaticano.
“Qualquer enfraquecimento desse elo colocaria em dúvida o magistério do Concílio (Vaticano Segundo) e dos papas Paul Vi, João Paulo II e Bento XVI.”
“Imploro ao papa Francisco que nos proteja definitivamente dessa possibilidade vetando qualquer enfraquecimento da lei do celibato sacerdotal, mesmo que limitado a uma ou outra região.”
Tanto Sarah quanto o papa emérito frisaram que estavam se manifestando em “obediência filial” a Francisco.
Talvez imaginando, assim, evitar os tapas metafóricos que o papa argentino vive distribuindo em linguagem cifrada – para não falar nos reais, como os que deu na mão de uma fiel mais exaltada.
Tanto Bergoglio quanto Ratzinger são homens inteligentes e religiosos dedicados. Ambos sabem perfeitamente que a Igreja está em refluxo acelerado.
Ratzinger, um teólogo refinado e altamente espiritualizado, dizia mesmo antes de ser eleito papa que a Igreja se fragmentaria em núcleos não contínuos de fieis comprometidos e dedicados como os primeiros cristãos. Nada mais dos católicos da boca para fora.
Bergoglio, um argentino simpático ao peronismo e à opção pelos pobres, fala muitas vezes de uma Igreja que se volte para as periferias, que mude não só seu olhar como o próprio motivo de olhar.
Quem está com a razão?
É uma questão que vai demorar para ser respondida.
Ou talvez não tenha como ser respondida.
Em qualquer caso, não é a Pachamama que tem a resposta.