Acostumados ao ciclo dos anos recentes em que a vitória política de um candidato implica em anular tudo o que seu oponente fez antes, a eleição presidencial do Uruguai pareceu um oásis: o esquerdista Yamandú Orsi não vai rasgar decretos, falar incessantemente em herança maldita ou tentar prender o presidente de quem receberá, civilizadamente, o poder, Luis Lacalle Pou.
Mas o bom exemplo da democracia uruguaia não muda a realidade: a direita sul-americana, em que triangulavam Argentina, Paraguai e Uruguai, perde uma das colunas do tripé.
Irá o professor de história de jeitão simples condenar veementemente as atrocidades políticas cometidas na Venezuela? Votar contra o país? Ficar do lado do chileno Gabriel Boric, a exceção esquerdista na condenação a Nicolás Maduro, ou formará entre os mais que condescendentes como Brasil e Colômbia? E como se relacionará com o próximo governo de Donald Trump e com o descendente de cubanos Marco Rubio, o secretário de Estado com pouca margem de tolerância para excrescências de esquerda?
Ao eleger Orsi, os uruguaios se colocaram fora da esfera de aliados que o governo Trump vê na América Latina, com a Argentina vários corpos à frente, mais Paraguai, El Salvador e República Dominicana. Também, obviamente, não optaram pelo confronto antiamericano do tipo que a diplomacia brasileira cada vez mais desenha.
SONHOS OUSADOS
Rubio terá que acertar milimetricamente o jogo com Trump, e é possível que seu conhecimento mais próximo lhe dê uma margem de ação maior em relação aos latino-americanos. Ele também chega ao cargo com cacife político próprio, ao contrário de diplomatas de carreira como o atual chanceler, Antony Blinken. Teve uma carreira sólida como senador e vários colegas democratas disseram que votarão por sua aprovação.
Logo de início, terá que se concentrar nos dois grandes problemas internacionais do momento, a Ucrânia invadida (e com paz prometida por Trump em “24 horas”) e a conflagração no Oriente Médio. Rubio é da linha dura em relação ao Irã e líderes do regime teocrático não devem estar tendo noites de sono tranquilas.
Javier Milei, em compensação, tem sonhos ousados, inclusive o de um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, o que implicaria na implosão do Mercosul.
Os uruguaios, de esquerda ou de direita, já fizeram sua opção preferencial pela China, o que também enfraquece o jogo do bloco sul-americano. Vai ser interessante ver a cúpula do bloco, em Montevidéu, na semana que vem, com a Argentina assumindo a presidência.
Acrescente-se a ambiguidade que cerca o Tratado de Livre Comércio com a União Europeia, que a França tenta sabotar de todas as maneiras, com o auxílio de supermercadistas midiáticos, e sobre o qual Milei agora tem uma posição dúbia.
“RESULTADO DUVIDOSO”
São várias pedras soltas no xadrez geopolítico. De modo geral, a América Latina não é prioridade para os Estados Unidos, exceto quando tem surtos de esquerdismo, o que continua anacronicamente acontecendo – com a honrosa exceção do Uruguai, onde a esquerda “amansou” sob a liderança do venerando ex-guerrilheiro Pepe Mujica, o mentor de Yamandú Orsi.
Sobre a Venezuela, o presidente eleito fala com cuidado, mas com honradez: “Nas últimas eleições, ficou claro que não foi um processo limpo e que o resultado é muito duvidoso”.
“Portanto, não é uma democracia, é um regime autoritário e, se quiserem, uma ditadura”.
Vários de seus colegas de esquerda, ao contrário, não querem de jeito nenhum assumir isso.
Se quisessem, já o teriam feito.