Decisões indecifráveis: o que será que estão colocando na água de Macron?
Esquerda convoca quebra-quebra contra primeiro-ministro nomeado pelo presidente - e, excetuando-se a violência, tem certa dose de razão
Emmanuel Macron tem se especializado em disparar mísseis Mistral contra os próprios pés e a designação de Michel Barnier, de um partido de direita, é mais uma das atitudes inexplicáveis do presidente desde que convocou uma eleição sabendo muito bem que perderia a maioria no parlamento.
Barnier só poderá governar com um acordo tácito ou explícito da Reunião Nacional, o partido de Marine Le Pen. Pois foi para não permitir que o partido de direita pura e dura ganhasse a eleição parlamentar por ele convocada, embora não precisasse, que foi feito um acordo com a frente de esquerda para solapar a Reunião Nacional e retirar as respectivas candidaturas que não fossem as mais competitivas no segundo turno. Foi chamado de “cordão sanitário”, como se o partido votado por mais de 30% dos franceses fosse uma praga ou ainda tivesse as tendências fascistas do passado.
Resultado: embora o partido de Marine Le Pen tenha conseguido eleger 143 deputados, um recorde, a Nova Frente Nacional, reunindo esquerdistas, socialistas e ecologistas, fez mais – 182.
Pela lógica, a frente esquerdista teria o direito de indicar o primeiro-ministro, mas Macron rejeitou todos os nomes cogitados. O principal partido da frente, o ultraesquerdista França Insubmissa, quer que o parlamento aprove a destituição de Macron e convocou a mãe de todas as manifestações para amanhã. Deixando de lado, como puro exercício intelectual, os excessos que esses protestos sempre provocam, é obrigatório reconhecer que tem certa dose de razão.
Como Macron não aceita nomear um primeiro-ministro indicado pela frente mais votada, mesmo que ainda minoritária? Não é assim que funcionam as eleições?
SUICÍDIO POLÍTICO
Devido a seu sistema peculiar, a França tem uma mistura de presidencialismo com parlamentarismo. Quando presidente e primeiro-ministro são de partidos diferentes, precisam administrar um regime mutuamente desconfortável. O presidente continua a ser forte, com as forças armadas e a política externa sob seu comando, além do controle sobre seu próprio partido e eventuais aliados, mas o primeiro-ministro, com maioria parlamentar, manda em todo o resto do governo. Esse regime é chamado de “coabitação”. Desde 1996, já aconteceu três vezes.
Se esse seria o resultado prognosticado por todas as pesquisas, por que Macron convocou eleições fora de época? E por que age como se não aceitasse seu resultado?
Desde que convocou a eleição completamente abilolada, uma espécie de suicídio político, a França passou dois meses com um primeiro-ministro interino. Detalhe: Gabriel Attal, a quem Macron não concedeu a satisfação mínima de comunicar que convocaria eleições e ele perderia o emprego, é um chefe de governo com 38% de aprovação – bastante razoável em termos do atual estado distópico da política francesa (Marine Le Pen tem 34% e Macron, 22%). Seria o candidato natural – jovem, promissor, bem avaliado – para suceder Macron na presidência e seguir uma política razoavelmente centrista e racional.
Mas a racionalidade parece ter desaparecido da pátria de Descartes.
PIOR ACORDO POSSÍVEL
Agora, o governo tem que ter o apoio de Marine Le Pen e da Reunião Nacional, o partido que Macron jurou jamais deixar se aproximar do poder, Michel Barnier será um primeiro-ministro que encontrará não apenas uma oposição surtada, mas um verdadeiro estado de pré-insurreição.
“Tem algo de barroco em, depois das eleições amplamente perdidas por seu campo, escolher como primeiro-ministro o representante de um partido que teve menos eleitores ainda nesse escrutínio”, sibilou o Libération.
Fontes do partido Le Pen insinuaram a aprovação sob a condição que Barnier se comprometa a convocar novas eleições na data mais próxima possível, julho do ano que vem, para mudar o sistema de representatividade na Assembleia Nacional – que está errado e deu poucos deputados à Reunião Nacional, relativamente ao número de votos, mas mexer nisso na atual situação é explosivo. Barnier assumiria já com o compromisso de acionar o botão da autodestruição.
Antes dele, Macron cogitou os nomes de alguns veteranos políticos socialistas, como Bernard Cazeneuve, todos radicalmente rejeitados pela França Insubmissa.
Agora, deu uma guinada, voltando-se para a direita com a nomeação de Barnier, que é do partido gaulista Republicanos. Foi a Barnier que Macron confiou a tarefa de negociar o pior acordo possível para o Reino Unido por ocasião do Brexit – para atemorizar os franceses que começassem a achar que a ideia de sair da União Europeia não era tão ruim assim. A maioria da população continua a apoiar o projeto europeu, mesmo com a rejeição, em plebiscito de 2004, do tratado estabelecendo uma constituição europeia.
SEM CARTA BRANCA
À época, a elite política, na prática, ignorou o resultado das urnas e foi adiante com o mesmo projeto integracionista – ironicamente, os dois partidos nos extremos do espectro político, Reunião Nacional e França Insubmissa, são contra a União Europeia, embora não assumam isso de forma oficial.
Será que Macron acha que pode fazer a mesma coisa nas circunstâncias atuais com a política interna francesa e tomar decisões monocráticas?
Só para dar uma ideia do descontrole que Macron criou: seu próprio partido disse que apoiaria, mas não daria uma carta branca a Michel Barnier.
Não existem precedentes de algo semelhante, um presidente desautorizado pelo próprio partido.
Essa é a distopia que Macron criou para si mesmo. Em termos políticos, claro.
Em termos de qualidade de vida, a quantidade de parisienses bronzeados, vindos das férias para o reinício do ano escolar e das atividades em geral, nas calçadas dos bares e restaurantes, aproveitando o finzinho fresco de verão, mostra que “la France éternelle”, a França eterna, uma expressão abominada pela esquerda, continua firme, forte e tão boa quanto sempre. E discutindo sem parar a pergunta de todas as mesas: o que aconteceu com Macron?