Primeiro, ele era folclórico. Um emigrado da tradicional – e bem stalinista – comunidade judaica de esquerda do Brooklyn que mudou para o gelado estado de Vermont e fez uma carreira alternativa na política.
Tipo assim “ah, esse pessoal de Vermont”, uns hippies de idade avançada que acham graça até num sujeito que se casa com esposa mais nova e vai fazer uma viagem à União Soviética em lugar de uma lua-de-mel propriamente dita.
Depois, virou uma espécie de Marina Silva: um candidato presidencial que jamais ganharia, mas despertou uma multidão de fãs. Geralmente um público jovem, de nível universitário, descrente da política tradicional. E, no caso americano, alérgico à candidata que fez o diabo para se livrar de Bernie Sanders, Hillary Clinton.
Agora, Bernie virou o Lula de 2002 dos americanos.
Um candidato de esquerda como nunca se viu nos Estados Unidos que está se tornando cada vez mais viável como o escolhido do Partido Democrata para enfrentar Donald Trump no próximo 3 de novembro.
Está faltando a “carta aos americanos”, uma espécie de garantia de que Bernie não fará as loucuras que constam de seu programa.
Não vai sair tão cedo, se sair.
A vantagem competitiva de Bernie, no momento, é que ele não é moderado (Joe Biden), nem ajuizado (Pete Buttgieg), nem chato (Elizabeth Warren).
Apesar do risco imenso — e tolo — de quem vive afirmando hipnoticamente que a história se repete, Bernie Sanders está desbancando os colegas democratas porque dá uma de Donald Trump.
Em vez de moderar o tom, apimenta. Apela aos instintos mais básicos de sua base. Acende, assim, o fator entusiasmo.
Os comícios dele nessa fase das primárias têm fogo e espontaneidade — tudo o que falta aos outros adversários democratas.
Com as vitórias nas primárias iniciais, também ganha, ainda inicialmente, outro fator fundamental: elegibilidade.
Isso quer dizer que ele se tornou um candidato capaz de desbancar Trump?
De jeito nenhum. Quer dizer que mais eleitores democratas estão acreditando nessa possibilidade.
Acreditar, evidentemente, já é mais do que metade do caminho.
Bernie Sanders também está lucrando com os defeitos dos outros.
Joe Biden se derreteu, como uma figura superada, falando a linguagem do passado (uns quatro anos atrás). Nem Barack Obama, o mais badalado pelos eleitores democratas, levantou uma palha para salvar Biden da autoincineração.
Indiretamente, obamistas “plantam” em várias hortas da imprensa que ele continua a duvidar da viabilidade de Bernie. Mas se os votos falarem, mais ter que aderir.
A opção Mike Bloomberg está encrencada.
O bilionário que seria um candidato mais ao centro, pelo menos no sentido de não pretender desmanchar o capitalismo via maluquices pseudoecológicas e outros intervencionismos sanderistas, está em estado de recuperação do linchamento verbal que sofreu no primeiro e único debate de que participou.
Bloomberg é um bobinho que não sabia o tamanho da encrenca? Geralmente, um sujeito que ganhou, por esforço próprio, mais de 60 bilhões de dólares, não tem o direito à ingenuidade.
Elementos que circulam em torno do planeta Trump acham Bloomberg um candidato que não pode ser descartado.
A fúria que um dos grandes, talvez o maior, ícones do libertarianismo americano, Clint Eastwood, despertou ao dizer que Bloomberg talvez seja o cara, indica que os trumpistas se preocupam seriamente com ex-prefeito de Nova York.
Mas como não existem bobos nesse universo, também não deve ser considerada líquida e certa a ideia de que Bernie Sanders, o admirador de Fidel Castro e Hugo Chávez, tenha sido uma manifestação enviada pelos céus para garantir a reeleição de Trump.
Como tudo o que acontece nos Estados Unidos, por motivos óbvios, reverbera no resto do mundo, a pré-candidatura de Bernie Sanders terá uma forte influência em outros países.
É cedo para dizer se, depois da onda trumpista, haverá uma onda sanderista. Conquistar a massa eleitoral foram do mundo universitário, liberal, artístico e intelectual é uma missão heroica.
E Bernie Sanders, o Tio Bernie, não tem o menor jeito de super-herói. É em esquerdista encarquilhado de 78 anos que usa clichês puídos sobre desigualdade de renda e outros argumentos empoeirados.
Zero de ideias novas e dinâmicas.
No momento, porém, dá para fazer uma analogia com a famosa declaração de Trump sobre a fidelidade de seus adeptos (“Eu poderia dar um tiro em alguém da Quinta Avenida e não perderia eleitores, okay?”).
Bernie Sanders poderia acenar uma bandeira vermelha e cantar a Internacional na Quinta Avenida e continuaria atraindo seguidores.
Por mais que os próprios estrategistas democratas se desesperem, esta é a realidade.
Por enquanto, pois a dinâmica das eleições primárias está de tirar o fôlego até dos profissionais.