Mesmo sem Xi Jiping (e felizmente também Vladimir Putin), Narendra Modi viveu momentos de glória internacional na cúpula do G20: todo mundo quer ser amigo de infância de um líder popular e bem sucedido, com uma montanha de dinheiro para gastar.
E todo mundo ficou atônito com o convite para o banquete oficial, emitido em nome da presidente quase invisível, mas apresentada como “presidente de Bharat”. Claramente um sinal de que o primeiro-ministro, que tem um índice de aprovação na casa dos 70%, aproveitou a cúpula internacional entre os ricos de sempre e os novos ricos, ou aspirantes a sê-lo, para avançar a causa da mudança de nome do país.
Seria também um grave erro de branding: o nome Índia é uma marca milenar, conhecida por todo mundo desde a Grécia Antiga e ligada a narrativas fantásticas. Tem origem no rio Indo. Foi atrás de suas riquezas, divididas entre diferentes reinos, que os audazes navegadores portugueses conseguiram o feito sem precedentes de abrir a via marítima através do Atlântico e do Índico. A Índia já era Índia antes do domínio do império britânico, uma experiência de menos de cem anos (1858 a 1947) numa história multimilenar.
Mas, obviamente, países mudam de nome porque querem apagar, superar ou dar um reset em trajetórias históricas complicadas.
O partido de Modi usa o nome alternativo porque tem uma ideologia altamente nacionalista, tanto religiosa quanto culturalmente identificada com o hinduísmo. A própria organização se denomina Partido Bharatia Janata, ou do povo indiano. Ou baratiano (barateiro seria horrível) , uma alternativa ao gentílico caso a nova/antiga denominação vingasse.
A ideologia do Bharatia Janata já foi chamada de supremacia hinduísta. Desse ponto de vista, os indianos muçulmanos e cristãos são vistos como traidores que abraçaram a religião de impérios invasores.
Apesar do enorme apoio popular a Modi, mudar o nome do país certamente encontraria enormes resistências, inclusive dessas minorias religiosas – só de muçulmanos, mais de 200 milhões. A questão é tão divisiva que 26 partidos de oposição formaram uma frente para as eleições do ano que vem. Nome: Aliança Nacional Desenvolvimentista Inclusiva Indiana. Em inglês, o acróstico é India.
O idioma dos colonizadores é um dos legados que mantém a unidade altamente complicada de um país com 121 línguas (e mais de 600 partidos políticos, imaginem o pesadelo). O sistema jurídico é outra herança positiva – sem contar as ferrovias. No ano passado, o PIB da Índia ultrapassou o do Reino Unido, um momento que certamente teve um gostinho de vingança – mesmo que estejamos falando de um país com 1,4 bilhão de habitantes, o mais populoso do mundo, em comparação com um de 67 milhões.
Apagar a herança colonial já levou Bombaim a virar Mumbai e Calcutá passar a se chamar Kolkata, entre dezenas de outros exemplos, embora muitos indianos continuem a usar as antigas designações, muitas delas versões aportuguesadas dos nomes original.
A Birmânia, que também fazia parte do Raj colonial, era Buma na linguagem popular, virou Burma em inglês e passou a ser Mianmar em 1989. Até hoje dá uma espécie de apagão quando alguém quer encontrar o novo gentílico para “birmanês”.
O Ceilão virou Sri Lanka e o legendário Sião, Tailândia. O xá da Pérsia fez um mau negócio quando trocou o histórico nome do país para Irã, com o objetivo de ressaltar as origens arianas. O xá passou e o Irã ficou.
A Turquia agora quer ser chamada de Türkiye, com trema e tudo (pronunciado Tarquiê), com o a fechado, talvez para eliminar a associação com a ave natalina que o nome do país tem em inglês. A Holanda quer ser Países Baixos, o que não dá muito certo em português. A guerra na Ucrânia criou dificuldades adicionais para designar o aliadíssimo de Moscou, a Belarus. Bielorússia resolvia bem mais os problemas de linguagem. A nova designação veio na onda de mudanças propulsionadas pelo fim do comunismo, que riscou do mapa as repúblicas “democráticas” e “populares”, que não eram uma coisa nem outra.
“Mudar o nome da Índia é uma insanidade política, resultado de nada menos que uma trama divisiva inventada por nacionalistas hinduístas com objetivos de curto prazo”, escreveu Jawad Iqbal na Spectator.
A turma de Modi quer mudar até o nome do Taj Mahal, o mais conhecido monumento indiano (construído por um imperador muçulmano, remontando a outro império conquistador cuja história também é altamente incômoda para os nacionalistas hinduístas).
Visitar o Tejo Mahalaya não teria a mesma graça, embora a leveza imprimida ao monumento funerário que praticamente transforma mármore em renda continuasse a mesma.
Com toda a imensa carga de tensões étnicas e religiosas, não aconteceu nenhuma tragédia de grandes dimensões sob os quase dez anos de governo Modi, apesar de episódios isolados, terríveis como sempre. Ele também não vê nenhum problema em convidar dos visitantes do G20 a tirar o sapato e visitar o memorial a Gandhi, o pai da independência morto, devido a concessões feitas a muçulmanos, por um radical hinduísta da mesma estirpe ideológica que deu origem ao Bharatia Janata. Administrar contradições é com ele mesmo.
Modi está propelindo o crescimento econômico e a modernização, de modo inteligente e aplaudido pela maioria da população. Em 2022/23, o aumento do PIB foi de 7,2%. Isso o habilitaria a uma iniciativa tão drástica quanto mudar o nome do país? É uma questão a ser debatida por nada menos que 1,4 bilhão de indianos. Ou baratianos.