Atentado ajudou candidatura Biden, mas Trump fatura até como Van Gogh
Não se fala mais na substituição do presidente, enquanto o mundo digital - e o real também - beneficia seu rival de orelha baleada
“A disputa presidencial terminou ontem à noite”, disse um deputado graduado do Partido Democrata à rede de televisão NBC, no dia seguinte do atentado contra Donald Trump. “Estamos todos resignados a um segundo governo Trump”,
E resignados também à candidatura de Joe Biden, que parecia tão completamente condenada antes da reviravolta existencial provocada pela tentativa de assassinato. Existem ainda rebeldes inconformados com Biden, principalmente porque eles próprios correm o risco de perder seus mandatos, mas o impulso das tratativas de bastidores para tirar o presidente refluiu.
Agora, o candidato alquebrado, com todos os sinais de senilidade, tem o caminho aberto – para a derrota, como reconhecem muitos de seu partido. Um Trump triunfante, reproduzido até como o famoso autorretrato de Van Gogh com a orelha cortada, parece imbatível.
Ou será arriscado demais prever o que vai acontecer em 5 de novembro? Ou o país inteiro pode cair num surto psicótico como o gênio holandês e alternar estados de espírito?
O fantástico reality show que está acontecendo nos Estados Unidos aconselha prudência. Há poucas semanas, Trump corria o risco de ser dobrado pela chuva de processos, Biden se recuperava da posição desvantajosa e em algumas pesquisas até aparecia na frente. O próximo e esperado corte na taxa de juros seria o empurrão que faltava.
Daí aconteceu o debate fatídico. E depois o atentado. Nunca existiu, na história recente, um sequência tão espantosa.
GATINHO CONTRA LEÃO
Mais seguro na posição de candidato que ia ser substituído, mas não foi e talvez nem vá ser, Biden tenta com sua voz enfraquecida que soa a miados de gatinho novo atacar um adversário que parece um leão, tendo sobrevivido com aura de herói às balas de um assassino.
Biden deu uma entrevista, ridícula, como lamentavelmente tanta coisa que tem feito nos últimos tempos, a Lester Holt, da NBC, garantindo, contra todas as evidências, que o único discurso absurdo e exagerado da praça pública virtual era procedente de Donald Trump.
Isso por parte de um homem que, em combinação com a propaganda política de seu partido, tinha fixado como linha de ataque propalar que Trump era a maior ameaça à democracia da história americana e seria um ditador.
Seus simpatizantes desdobravam-se em comparações execráveis de Trump com Hitler, uma patologia que deve ser combatida com todas as forças por todos pela depravação moral e intelectual que implica.
SENHOR DOS ANÉIS
“Não é algo procedente de vozes nas bordas das redes sociais ou do YouTube, mas sim de algumas das vozes mais respeitadas e estabelecidas do partido, desde praticamente todo mundo que aparece na MSNBC até Hillary Clinton”, enumerou o New York Post.
A referência é ao canal de notícias que está à esquerda da Rádio de Havana e que tem no programa do casal Joe Scarborough e Mika Brzezinski, amigos de frequentar a casa de Biden, algumas das manifestações mais inflamadas contra Trump. São tão partidarizados que a direção suspendeu o programa na segunda-feira, ainda sob o impacto do atentado.
Saberemos amanhã, em seu discurso na convenção republicana, se Trump entende as vantagens de assumir uma posição conciliadora em vez de, como sempre, partir para o ataque. Não se trata exatamente do tipo de pessoa que oferece a outra face.
Vice não ganha eleição, mas Trump já faturou com o clima de renovação representado pela escolha para sua chapa de J.D. Vance, 39 anos, filho de uma viciada em drogas criado pela avó (de cigarro na mão e revólver na cintura) e ex-fuzileiro naval formado em direito em Yale. Vance entrou na vida pública através do bilionário Peter Thiel, com quem foi trabalhar na Mithril Capital, uma de suas empresas batizadas com nomes tirados do Senhor dos Anéis.
FILÓSOFO FRANCÊS
O libertário Thiel foi um dos raros empresários do mundo high tech a apoiar Trump na eleição de 2016 e bancou dez milhões de dólares para financiar a candidatura de Vance ao Senado pelo estado de Ohio. Nos dois casos, funcionou.
Vance foi inspirado pelas ideias de Thiel com base no pensamento do filósofo René Girard, francês radicado nos Estados Unidos, e suas teses sobre o caráter mimético do desejo (nosso desejo por algo é sempre triangulado pelo desejo do outro, numa simplificação de arrepiar os especialistas).
Quem diria que alguém da campanha de Trump acabaria discutindo um filósofo francês, ainda por cima com um componente estruturalista?
Essas surpresas fazem o reality show americano ficar cada vez mais emocionante.
Em 2019, Vance se converteu ao catolicismo, em outro movimento completamente fora da curva. E é casado com um advogada de origem indiana e praticante da religião hinduísta, Usha Chilukuri, que foi estagiária de dois juízes conservadores da Suprema Corte.
De fazer sombra a Kamala Harris – jamaicana por parte de pai, indiana por parte de mãe.
MIMÉTICA DO DESEJO
A vice-presidente estava com tudo armado para substituir Joe Biden caso grandes personalidades do Partido Democrata chegassem a um acordo para dizer ao presidente que não dava mais.
Tudo mudou agora – repetindo, agora. Na semana que vem, se Biden der mais escorregões feios, será diferente.
A mimética do desejo, tão projetada na Casa Branca, continua bombando.
É muito fácil imaginar uma disputa, em 2028, entre Kamala e Vance. O candidato a vice escreveu um elogiado livro com base em sua vida. Vendeu três milhões de exemplares e o filme já está na Netflix.
“CONVERSA BOA”
“O que seria da vida se não tivéssemos coragem de tentar nada?”, perguntou Van Gogh, o pintor tão completamente fracassado em vida e tão formidavelmente bem sucedido depois dela.
Sua frase vale para todos os envolvidos aqui mencionados.
Importante: Biden ligou para Trump depois do atentado e os dois tiveram uma conversa “interessante; na verdade, muito boa”. A confidência foi feita numa chamada privada entre Trump e o “terceiro candidato”, Robert Kennedy Jr., vazada pelo filho deste.
Dá para ter um pouco, um pouquinho só, de esperança.
Ou simplesmente rir com a sátira do site Babylon Bee: “Analistas políticos concordam que o vencedor da eleição presidencial provavelmente seria o que sobreviver até novembro”.