Argentina: movimentos sociais extorquiam beneficiados por bolsas
Taxa de 2% por benefício e obrigação de participar em marchas de protesto eram algumas das chantagens que estão sendo reveladas
Javier Milei não estava nem há duas semanas no poder, em dezembro, e a massa já estava na rua, protestando. A reação do governo foi tradicional, muita polícia na rua para que o trânsito não fosse bloqueado, e criativa: uma linha especial para denúncias de beneficiários de planos sociais sobre a pressão que sofriam dos líderes piqueteiros.
Os resultados estão aparecendo agora. Líderes de movimentos esquerdistas como Polo Operário, Bairro de Pé e Frente de Organizações em Luta, agradavelmente encarregados de comandar a distribuição de benefícios durante o governo peronista, chantageavam os beneficiados pelo plano Potenciar Trabalho, voltado a desempregados.
As vítimas, obviamente de alta vulnerabilidade social, tinham que entregar 2% dos benefícios, eram obrigadas a participar de protestos e até a revender alimentos destinados a restaurantes populares.
“Era um sistema de castigos e ameaças. Entre os castigos, incluía-se ter baixa no benefício e voltar à lista de espera e assim voltar a ficar fora do sistema de alimentação”, disse o ministro da Casa Civil, Nicolás Posse. “Os escalões superiores forçavam as pessoas dos escalões inferiores a vender comida dada pelo Estado e ficavam com os lucros”.
Posse comparou as ações a um “sistema de escravidão moderna”.
“ARRECADAR MAIS”
Para não deixar nenhuma oportunidade de fora, dezenove dos 27 líderes dos movimentos sociais agora acusados também recebiam benefícios, quando não empregos no governo anterior, principalmente no Ministério de Desenvolvimento Social.
Um exemplo, entre muitos: Jeremías Cantero, da direção do Polo Operário, foi admitido na Secretária Nacional da Infância em janeiro de 2020 e recebeu salário, inclusive horas extras, até abril de 2023. Obviamente, não tinha que fazer nada tão vulgar quanto trabalhar. Segundo a acusação, ele “coordenava o funcionamento de vários restaurantes populares em Buenos Aires e, nessa posição, intervinha na tomada de decisões sobre as exigências coercivas e extorsivas às vítimas”.
“É preciso fazer um esforço para arrecadar um pouco mais”, diz ele num telefonema interceptado. “Cada um tem que contribuir com mais de 2%”.
Não é exatamente uma surpresa que governos de esquerda beneficiam movimentos de esquerda, mas não deixa de ser chocante ver a exploração cínica justamente dos mais necessitados – e prejudicados pelas consequências nefastas das políticas que levaram a Argentina a uma situação perversa de inflação altíssima e aumento da pobreza.
Uma parte da votação recebida por Milei é atribuída justamente às camadas mais pobres, vitimadas pela exploração daqueles que deveriam representá-las.
O reajuste extremamente duro proposto por Milei está, como sempre, prejudicando os pobres e também a classe média argentina, mas mantém uma taxa de aprovação relativamente alta considerando-se os enormes sacrifícios.
Uma pesquisa da semana passada mostra o seguinte resultado à pergunta sobre a imagem de Milei: muito ruim, 29,1%; ruim, 11,2%; boa, 23,8% e muito boa, 25,6%
“MELHORA RÁPIDA”
Conseguirá o plano motosserra de cortes de gastos, entre outras medidas radicais, cumprir a virada prometida por Milei?
Esta semana trouxe algumas notícias boas. A inflação mensal caiu para um dígito, 8,8%, a taxa de juros foi cortada para 40% e o FMI elogiou o andamento geral do plano.
“O plano de estabilização está conseguindo resultados melhores do que o esperado”, disse a porta-voz do FMI, Julie Kozack.
“Houve uma melhora rápida nas reservas internacionais, uma melhora no equilíbrio do Banco Central e uma rápida redução da inflação. Esperamos que a economia comece a crescer novamente na segunda metade do ano”.
Em depoimento ao senado, o ministro Nicolás Posse previu uma inflação de 139% até o fim do ano – um número de fazer qualquer um chorar se não fosse o resultado pré-Milei de quase hiperinflação – e o dólar a 1 016 pesos.
A pesquisa acima mencionada diz sobre o pacote de medidas de Milei, ainda dependendo muito da aprovação no Senado e do teste da realidade: concordam, 41,9%; discordam, 42%, e ainda não sabem, 16,1%.
É talvez desses 16% que depende o futuro de Milei. Se conseguir conquistar uma parte deles, terá ultrapassado a estreitíssima janela de oportunidades com que joga um jogo de vida ou morte.