“Como remover os herdeiros de Stalin de Stalin?” A pergunta, lançada em 1962 pelo poeta Ievgeni Ievtuchenko — um pouco rebelde, um pouco oficial, numa das tantas complexidades russas —, volta a nos assombrar sessenta anos depois. Outra relíquia que parecia confinada à memória dos que ainda se lembram do jogo War, honrado predecessor dos games: disputa por matérias-primas, petróleo explodindo, bombas caindo, portos cuja tomada pode definir o futuro da guerra. A própria guerra, com colunas de tanques avançando debaixo de neve, parece um filme de época. O nacionalismo russo, mesmo que aparentemente domado sob camadas de shopping centers e outras comodidades, reaflora como uma força furiosa da natureza. E quem estava preparado para o patriotismo dos ucranianos, com um presidente como Volodymyr Zelensky prometendo que os russos vão ter de “acabar com todos nós” para tomar Kiev, não como um político que enfeita a retórica, mas como um Leônidas que faz lives?
Escrevendo no The Guardian, o que já mostra suas simpatias políticas, Robert Reich, influencer intelectual que foi do governo Clinton e leciona em Berkeley, enumerou todas as coisas que dava por superadas. Entre as certezas que caíram por terra estão a crença de que a globalização diluiria fronteiras e pulsões nacionalistas, a internet não permitiria mais que máquinas de propaganda como a da Rússia dominassem a narrativa em seus domínios, países avançados não iriam à guerra por conquistas territoriais e uma guerra nuclear era impensável. “A Ucrânia mostrou que as velhas certezas estavam erradas”, anotou Reich.
“Como remover os herdeiros de Stalin de Stalin?”, perguntou o poeta Ievgeni Ievtuchenko em 1962
Seriam estes apenas estertores de um mundo antigo que se recusa a acabar com um suspiro? A mesma guerra que ressuscita forças que pareciam caminhar para a superação também desenha conflitos do futuro. A rapidez com que todas as grandes marcas do planeta, de A (de Apple) a Z (de Zara), caíram fora da Rússia, temendo mais os prejuízos morais do que os materiais, mostra que a opinião pública — também conhecida como redes sociais — virou um fator que influencia o rumo de acontecimentos reais de forma jamais vista. Outra surpresa: a guerra híbrida, uma doutrina desenvolvida pelo chefe do Estado-maior russo, general Valeri Gerasimov, está sendo explorada habilmente pelos ucranianos. Dois dias depois da invasão, o vice-primeiro-ministro Mikhailo Fedorov, recrutado originalmente para a pasta da Transformação Digital e agora para o esforço de guerra, mandou um tuíte à 1 hora e 6 minutos da tarde para Elon Musk, pedindo equipamentos para que o país pudesse se conectar com a internet via rede de satélites Starlink. Às 11 horas e 33 minutos da noite, o homem mais rico do mundo respondeu: “Starlink está ativado na Ucrânia. Mais terminais a caminho”. Detalhe: Fedorov tem 31 anos.
Como esta é uma guerra que a Ucrânia não pode ganhar e a Rússia não pode perder, é bom nos prepararmos para outros avanços rumo ao futuro — e muitas e perturbadoras voltas ao passado. Avisou Ievtuchenko: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stalin, para mim, no Mausoléu, Stalin ainda resiste”. O corpo embalsamado foi tirado há muito tempo do mausoléu, mas a maldição da múmia reverbera através do tempo.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781