Por que não damos certo? Por que as figuras sul-americanas mais faladas do momento são o novo presidente que conversa com um cachorro morto e o veterano ditador que inventou uma fictícia guerra no fim do mundo? Por que o ensino no Brasil acabou com um exame de avaliação em que o agronegócio é acusado de crimes como “a mecanização pesada, a ‘pragatização’ dos seres humanos e não humanos, a violência simbólica, a superexploração, as chuvas de veneno”? E, nada surpreendentemente, os “pragatizados” são os pobres estudantes brasileiros que produziram uma nota de 397 pontos no Pisa, contra os 560 de Singapura, 533 de Taiwan e 523 da Coreia do Sul, nunca introduzidos às maravilhas dos métodos para criar “cidadãos críticos” sem precisar de banalidades como entender textos. Na temporada nacional de autoflagelação que o Pisa sempre desencadeia, o “consolo” foi que a Argentina, que historicamente teve um sistema educacional melhor do que o brasileiro, conseguiu ficar pior ainda do que nós, com 396 pontos.
“A regressão da Argentina é um dos fenômenos mais impressionantes da América que não dá certo”
A regressão da Argentina é um dos fenômenos mais impressionantes da América que não dá certo. O início do governo de Javier Milei obscureceu um fato anedótico que, de maneira quase surreal, ilustra nossas misérias recentes. Antes de deixar a Vice-Presidência, Cristina Kirchner tomou importante providência: sequestrou a estátua do marido, Néstor. O monumento, feio de doer, tem uma espécie de maldição. Foi uma doação feita em 2014 por Cristina, então presidente, à Unasul, um delírio bolivarianista. Participaram da inauguração Rafael Correa e Dilma Rousseff, atingidos por derrotas políticas devastadoras. Com a derrocada de Correa, grupos de oposição a ele e de exilados argentinos fizeram protestos em frente à sede da Unasul e até ameaçaram derrubar o abantesma. Em 2019, a estátua foi para um depósito, de onde saiu no ano seguinte, com Cristina de volta ao poder, e rumou para a Argentina, sendo instalada no Centro Cultural Kirchner. Agora, com a ascensão de Milei, ela desapareceu de lá. Uma funcionária esclareceu: “Cristina a levou”.
Milei está no comando de um país quebrado. Assim explicou a origem da crise o Financial Times, produzindo um diagnóstico de males que deveriam servir de exemplo a qualquer governante lúcido. “A raiz dos problemas da Argentina é o gasto excessivo crônico do governo. O tamanho do Estado dobrou nas duas últimas décadas. O emprego no setor público aumentou 34% entre 2011 e 2022, enquanto no setor privado cresceu apenas 3% no mesmo período”, comparou o jornal. “O governo peronista recorreu à emissão de dinheiro para financiar o déficit. A oferta monetária disparou e o valor do peso desabou. A derrocada do peso turbinou a inflação, uma das mais altas do mundo.” Precisa desenhar?
A estátua de Néstor Kirchner deve reaparecer em Santa Cruz, o feudo do clã. Suas andanças são um retrato melhor do que todas as explicações já especuladas sobre nossas desgraças, desde o modelo colonial até a exploração dos americanos malvados, passando pela teoria da dependência e a cultura clientelista. Será que algum dia terá a companhia de uma estátua de Cristina, fazendo aquele gesto feio com a mão?
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872