Com cinco de seus doze livros já publicados no país, entre eles o recém-chegado O que Aconteceu na Nossa Infância – E o que Fizemos com Isso (tradução de Mariana Corullón, Best-Seller, 252 páginas, 42,90 reais), e algo como 50.000 exemplares vendidos por aqui, a psicopedagoga argentina Laura Gutman se converteu em uma espécie de guru para muitas mães brasileiras. Seu maior best-seller, A Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra, que toma emprestado do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung o conceito de “sombra”, mais amplo que o freudiano “inconsciente” por abarcar o “espiritual”, vendeu sozinho 40.000 cópias no Brasil, e outras 150.000 entre a Argentina e a Espanha. Laura, que já dedicou 35 dos seus 59 anos ao atendimento de, pelos seus cálculos, algo como 18.000 consultantes, como chama os pacientes ouvidos por ela mesma ou por sua equipe, defende no novo livro a tese de que o amor que recebemos da nossa mãe na infância é fundamental para a constituição da pessoa que nos tornamos quando adultos, e que ele é quase sempre insuficiente, o que nos leva a desenvolver personagens e problemas que precisamos conhecer para dissolver, viver em paz e amar melhor. O método, batizado de Biografia Humana, reforça a ideia de Laura de que, para criar filhos, basta o amor – a psicopedagoga é contra a sugestão de psicólogos que defendem a frustração e a imposição de limites e fala até em “obedecer” as crianças, que, segundo ela, não pedem mais do que precisam. Confira abaixo a entrevista de Laura Gutman:
Em que medida o bem-estar das nossas crianças é reflexo da infância que tivemos? Nossos filhos dependem da nossa maturidade emocional e da nossa capacidade de amá-los do jeito que necessitam. E essa capacidade de dar prioridade às necessidades das crianças e delegar as nossas próprias depende da infância que tivemos. Por quê? Porque, se não tivemos sido suficientemente amados, amparados, percebidos, sentidos, acolhidos e acompanhados durante a infância, logo – ainda que cresçamos – pretenderemos seguir recebendo reconhecimento e carinho. Esse vazio se revela quando temos crianças pequenas, porque o adulto está programado para dar, e o filho, para receber.
Como superar uma infância sem amor suficiente e ser uma mãe conectada? Desenvolvemos todos um “personagem” como um “mecanismo de sobrevivência” necessário em consequência do nível de desamparo vivido. Às vezes, o fazemos para agradar a nossa mãe, depende de cada caso. Identificar o personagem e, sobretudo, resgatar o nosso ser essencial – que também podemos chamar nosso “eu autêntico” – é o caminho. E é possível indagando a si mesmo pelo processo da biografia humana, que é um sistema que desenvolvi e que ensino. Nele, profissionais instruídos no método buscam – como detetives – a realidade emocional e as experiências reais do ponto de vista da criança que fomos. Assim, vamos ordenando o quebra-cabeça da vida de um indivíduo, deixando de lado as lembranças e as opiniões que cada um tem sobre a própria vida, porque em geral esses pensamentos estão organizados segundo a lente da mãe, que nos transmitiu essas informações, e não nos servem.
Como conceituar o amor? O amor é dar ao outro o que o outro necessita. A infância é o momento da vida em que devemos receber amor, somos programados para isso. A adolescência é o momento em que ensaiamos formas de amar. A fase adulta é o momento de amar o outro. O problema é que, se não fomos suficientemente amados quando crianças, logo nos perguntamos como dar amor, porque não sabemos.
Por que a senhora considera o “não” uma arma ineficaz? Se a criança pede algo, é porque necessita. Se não recebe aquilo de que precisa, vai pedir outra coisa para que possa ser escutada, como uma bala ou um pirulito, digamos. A necessidade original, no entanto, permanece insatisfeita. Por isso, nós, adultos, precisamos rebobinar o tempo e procurar compreender qual era o pedido primeiro da criança, que era legítimo. A intenção de negar ao filho aquilo de que ele realmente necessita é infrutífera.
Em seu novo livro, a senhora afirma que, “Se pudéssemos tomar a decisão de obedecer à criança, beber da sua sabedoria inata e contar apenas com o seu critério, poderíamos consertar anos de violência desumana”. Mas o que fazer se uma criança se nega a escovar os dentes? Acontece que os adultos têm o mau hábito de ver cada cena pelo “buraco da fechadura”. Ou seja, vemos tudo de forma estreita, restrita. A criança não quer escovar os dentes. Muito bem. Nesse dia estávamos por perto? Brincamos juntos? A criança esperou, passou o dia na escola, se adaptou, não incomodou ninguém, não se comportou mal, estudou, respondeu às exigências dos adultos… mas no final do dia não tem força para nada, então se recusa a escovar os dentes. Parece ser a única batalha que consegue vencer. É definitivamente difícil ser criança. Mas o mais importante: nós nos atrevemos a lembrar da nossa infância e tocar o nível de frustração, solidão, e distanciamento afetivo de nossas mães e também os medos que sofremos? Estamos tão distanciados do nosso coração que hoje não podemos sentir a criança e a tratamos como se fosse nossa inimiga.
Muitos psicólogos apontam a frustração e os limites como caminho para o amadurecimento. Me interessa muito pouco as opiniões dos psicólogos. Crescer é muito difícil. A maturidade é algo que vamos alcançando se nos sentimos amados. Nos sentindo amados, poderemos evoluir de acordo com cada etapa da vida. Por outro lado, se somos maltratados, não podemos amadurecer. Ainda que tenhamos 30, 40, 50 ou 80 anos, ainda estaremos reclamando amor, pedindo que nos amem, que nos queiram, que nos compreendam, que nos reconheçam, que nos aliviem, que nos nutram. Se não tivermos sido suficientemente amados, permaneceremos fixados em necessidades afetivas não satisfeitas. A frustração nunca será um caminho para a maturidade, pelo contrário. Não me importa que não me ouçam: observemos o mundo tal como está e iremos entender. Todos reclamam amor, cuidados, atenção… não há adultos oferecendo seu coração desinteressado ao mundo, algo que faz tanta falta. Sobre os famosos limites, perguntemos a qualquer criança se essas negativas, essa rejeição ou a incompreensão do adulto são sentidas por ele como um ato de amor.
No caso de uma criança adotada com idade avançada, há como compensar o amor perdido nos primeiros anos? Bom, é preciso ver caso a caso. Depende de quais foram as condições nas quais viveu antes da adoção, da idade da adoção e da paciência e da amorosidade dos pais adotantes. Mas nunca é tarde. Mesmo que tenhamos filhos adultos. Qualquer momento é o ideal para se interrogar, para olhar o passado, entender quais os níveis de impotência a que se foi submetido, rever o que se fez e tomar decisões sobre o que se pode fazer pelo próximo.
Em seu novo livro, a senhora atribui a corrupção à falta de amor materno. Não é arriscado, por eximir as pessoas de responsabilidade? São inumeráveis os estragos que causa a falta de amor durante a infância. Alguns se enchem de substâncias que suavizam a dor (álcool, cigarros, dinheiro, psicotrópicos), outros de reconhecimento público ou poder (caso dos políticos). A corrupção é uma das tantas consequências, porque é quando se manifesta um indivíduo voraz, que sente a dor do vazio e que crê que, roubando e se enchendo de dinheiro, vai compensar essa falta. Coisa que de nenhuma forma vai ocorrer. Óbvio que o adulto é responsável. Esta compreensão sobre o que nos aconteceu na infância não é uma justificativa, mas uma tentativa de se compreender para poder mudar.
Há quem ache que a senhora coloca muita responsabilidade sobre a mãe, que já tem percalços simplesmente por ser mulher em um mundo machista. O que pensa dessas críticas? Que esgotam a minha paciência. De todas maneiras, com relação aos filhos pequenos, não há dúvidas: somos mamíferos, as crianças saem dos nossos ventres, são amamentadas por nós e vivem a fusão emocional conosco, suas mães. Ou então vivem o vazio emocional pela distância imposta pelas mães. Os homens têm outras maneiras de oferecer abrigo, amor, disponibilidade e apoio.
Qual o papel ideal do pai na criação de um filho? O ideal seria que uma mãe fosse suficientemente madura para priorizar seu filho. E que um pai fosse suficientemente maduro para priorizar sua mulher, para que então ela pudesse priorizar o filho. Não digo que um homem seja incapaz de cuidar de um bebê. Claro que ele é capaz, mesmo um filho de 10 anos é capaz de cuidar do irmão. O problema não é se ocupar da criança, o problema é se fundir com ela e percebê-la. É necessário que o adulto disposto a se fundir com o mundo interior do bebê esteja em condições emocionais para fazê-lo. E, para isso, temos que tolerar estar em contato com o próprio mundo interior, dolorido desde a infância, pois também foi um filho. Se não há uma mãe emocionalmente disponível, mas em compensação existe um pai, um tio, um avô, um elefante ou um hipopótamo, dá no mesmo. O garotinho só precisa se sentir percebido. Em vez de decidir quem pode ou não assumir o cuidado dos filhos, precisamos refletir sobre o quanto temos de nos ajudar uns aos outros a adentrar os territórios da nossa alma ferida e depois amar a criança que precisa da nossa completa disponibilidade emocional.
No caso de um casal homossexual, como fica a divisão de tarefas? A divisão é a mesma. Nos casais homossexuais, existe alguém que assume um lugar mais feminino e outro, o mais masculino.
Uma das maiores queixas das mães é a de receber críticas e palpites sobre a forma como criam seus filhos – além de muito pouca ajuda. Por outro lado, a senhora afirma que não há certo ou errado na criação dos filhos. Isso ajuda a explicar a sua popularidade? Críticas são depredatórias para a díade mãe-bebe. As avós, tias, vizinhas ou amigas só deveriam estar à disposição, perguntando, “O que posso fazer hoje?”. As mães com filhos pequenos necessitam de uma tribo de mulheres, de ajuda mútua. Se não tivermos uma tribo feminina por perto, temos de criá-la, por meio da internet ou da vizinhança. Precisamos compartilhar experiências, sentir-nos abraçadas e entendidas. Estou certa de que os seres humanos – como outras espécies de mamíferos – são projetados para viver em comunidade. Uma mãe e um pai são pouco para criar uma criança. Mas quatro mães podem criar cinquenta crianças.
O que a senhora pensa da corrente de especialistas que defende deixar a criança chorar no berço até dormir? A realidade é que, se passamos uma infância em que a crueldade estava presente, assim como a distância, o autoritarismo, os castigos e a repressão, é fácil compreender que hoje temos o coração tão frio que podemos perfeitamente “opinar” que deixar sofrer uma criança seja algo bom. Somos mamíferos humanos, nascemos imaturos, precisamos de cuidados, segurança, contato corporal, percepção materna, abrigo, braço, carícias e proximidade emocional. Não estamos preparados para ficar sozinhos. Dependemos dos mais velhos. Entre os cachorros, por exemplo, é assim: os filhotes dormem no centro da matilha e os adultos cuidam dos predadores. Se os cachorrinhos fossem deixados sozinhos, os predadores os comeriam. Não somos tão diferentes. Quando as crianças sentem que estão em perigo sozinhas, choram quando chamando a mãe. Se ela não vem, é um desastre.
Compartilhar a cama com o filho pode ser uma boa estratégia ou isso pode atrapalhar a vida sexual do casal e, por consequência, o bem-estar da família? Não se trata de estratégias. Estamos falando do desenho original do ser humano e de decidir se preferimos manter uma civilização patriarcal, isto é, de dominação do mais forte sobre o mais débil, e sobretudo do adulto sobre a criança, ou se estamos dispostos a fazer algo para que os frutos de nosso ventre se sintam tão amados, seguros e satisfeitos, para que logo se convertam em homens e mulheres pacíficos, amorosos e sábios. Todo o resto não importa. É sério que estamos tão desesperados para ter sexo com nosso parceiro? Bom, se temos tanta sorte assim, podemos dar um pulo em outro cômodo a qualquer momento.
Até que idade devemos dar colo para o filho? Nós, seres humanos, não somos máquinas. Quando adultos terminam de fazer amor, quanto deve durar um abraço? Há risco de abraçar a pessoa amada por mais de quatro minutos?
Em O que Aconteceu na Nossa Infância…, a senhora sugere que a mãe tire da escola o filho que sofre por frequentar o colégio. Acredita que esse possa ser um caminho de maior desenvolvimento para a criança? Respeito a escolaridade, pouco importa o que cada família decida fazer quanto à formação escolar dos filhos. O que importa, isso sim, é escutá-los, compreender o que acontece com eles e acompanhá-los para que vivam confortavelmente. É verdade que a escola, tal como a concebemos hoje, é anticrianças. Não está organizada a favor do desenvolvimento da criança, e sim da subordinação. Em verdade, muitas crianças se rebelam e a rejeitam. Outras se adaptam. Por outro lado, deixar de mandar o filho a uma escola convencional não garante coisa alguma. Tudo depende da maturidade que tenham os adultos para compreender do que de fato precisa esse menino em particular, e de estarem dispostos a buscar as melhores opções para o seu crescimento.
Para a senhora, o amor materno foi na medida? Eu tenho uma história infantil relativamente boa. E tenho três filhos adultos, já autônomos e independentes, que sempre se sentiram amados. Mas todo o trabalho que desenvolvi nos últimos 35 anos não está baseado na minha experiência pessoal, e sim na experiência de milhares e milhares e milhares de indivíduos. Seria estúpido e tolo colocar minha vida no centro da cena.