João Luís Ceccantini*
Hoje, no Brasil, quando se pensa em escritores de nossa literatura que conseguiram projeção substantiva no exterior, tanto por vendas quanto por um número relevante de traduções ou atenção da crítica, os primeiros nomes que costumam vir à mente são os de Jorge Amado e Paulo Coelho. No entanto, um escritor brasileiro que, nesse âmbito, nem sempre tem sido lembrado, mas também obteve uma repercussão muito destacada em países estrangeiros, é João Ubaldo Ribeiro. Apesar de não poder competir com os outros dois em cifras, Ubaldo leva vantagem por se tratar de um escritor que, nos círculos literários especializados, usufrui de prestígio superior ao desses colegas de profissão.
Sargento Getúlio (1971), Viva o Povo Brasileiro (1984), O Sorriso do Lagarto (1989) e A Casa dos Budas Ditosos (1999), para citar apenas algumas das principais obras do escritor, foram romances que, além de serem publicados em Portugal com grande êxito, foram traduzidos para ao menos quatro dentre cinco línguas-chave no contexto global: inglês, francês, alemão, espanhol e italiano.
Além disso, foram feitas traduções para várias outras línguas de alguns desses romances e de diversas outras obras do autor, o que contribuiu para que ganhasse prêmios relevantes no exterior, auxiliando a afirmar cada vez mais sua reputação internacional: o Prêmio Anna Seghers (1994), concedido pela Academia de Artes de Berlim na Feira do Livro de Frankfurt; o Prêmio Die Blaue Brillenschlange (1995), concedido ao melhor livro infanto-juvenil sobre minorias não-europeias, no caso a tradução alemã de Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel (título publicado no Brasil em 1983 e na Alemanha em 1994) ; o Prêmio Camões (2008), entre outros.
O sucesso internacional da obra de João Ubaldo, façanha almejada por tantos outros escritores, está certamente ancorado num aspecto de caráter geral, que é a dimensão universal que sua literatura possui, imbricada à decantada brasilidade que nela se costuma celebrar. Trata-se de uma dimensão germinada na própria formação do escritor e que se desdobra em vários elementos de seu fazer literário, criando as condições necessárias para que tantos leitores de outras nacionalidades e culturas se identifiquem com sua obra e a acolham de maneira tão efusiva.
Muito já foi escrito sobre a educação rigorosa ministrada a João Ubaldo por seu pai. É possível hoje dar-se conta de que, ainda que a duras penas, ela certamente cumpriu um papel importante na formação cosmopolita do escritor, permitindo-lhe desde muito cedo assimilar o melhor da literatura ocidental e atingir um aprendizado efetivo de línguas estrangeiras. Por meio de métodos nem sempre muito ortodoxos – como diariamente verter para o português as letras de canções francesas que seu pai gostava de ouvir, prestar contas cotidianas dos livros lidos, resumindo-os e traduzindo fragmentos de maior relevância ou até mesmo copiar nas férias os Sermões do Padre Vieira –, o fato é que João Ubaldo absorveu em profundidade clássicos como Rabelais, Shakespeare, Cervantes, Homero, Faulkner, entre tantos outros, e adquiriu grande domínio em línguas estrangeiras, particularmente o inglês.
Essa habilidade certamente auxiliou a que algumas portas se abrissem para ele no exterior, mas isso se deu, sobretudo, quando resolveu se incumbir, ele mesmo, da tradução de seus dois mais festejados e premiados romances – Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro, publicados nos Estados Unidos em 1978 e 1989, respectivamente.
A tradução consistiu numa tarefa hercúlea, devido às características muito particulares das duas obras, que exploram os mais diversos aspectos da flora, da fauna e da geografia brasileira, assim como os diferentes registros linguísticos, do erudito ao popular. Abraçar essa empreitada, que dispendeu vários anos de trabalho, além de assegurar um rigor pouco comum em traduções, rendeu ao escritor grande prestígio no país e no exterior, por se tratar de um caso ímpar. Vale destacar que, embora tenha ganho o Prêmio Jabuti por Sargento Getúlio em 1972, essa obra alcançou um círculo leitor mais amplo e um valor simbólico mais alto apenas quando foi lançada nos Estados Unidos e recebeu críticas muito favoráveis.
Outra experiência importante de João Ubaldo nessa trajetória de tornar-se conhecido fora do país é sua estadia por pouco mais de um ano na Alemanha, em Berlim, quando ganha uma bolsa da Deutsch Akademischer Austauschdienst. Lá escreveu crônicas semanais para o jornal Frankfurter Rundschau e produziu Hörspiele, peças radiofônicas que usufruem de grande popularidade na Alemanha. Com esse trabalho, tornou-se reconhecido e valorizado num país em que a literatura é levada muito a sério e que faz com o que acontece no mundo literário alemão repercuta por todo o globo. A “experiência alemã” culminou com a publicação do livro Ein Brasilianer in Berlin, lançado em 1994 na Alemanha, e, sintomaticamente, apenas um ano depois no Brasil, sob o título de Um Brasileiro em Berlim.
Mas é preciso reforçar que não apenas esses fatores contextuais contribuíram para a repercussão tão positiva que a obra de João Ubaldo alcançou em muitos países. Os vínculos intensos do escritor não apenas com a cultura brasileira, mas com o melhor da cultura ocidental, produziram ecos poderosos no interior de sua obra. Basta imaginar a surpresa e, ao mesmo tempo, o encantamento de um estrangeiro ao deparar com a personagem de um rude militar que atravessa o sertão brasileiro, levando, sob as condições mais adversas, um preso político a uma prisão distante, e o vê reproduzir o célebre monólogo de Hamlet, adaptado às circunstâncias da narrativa – “Levo ou não levo?” –, em Sargento Getúlio. Do mesmo modo, o que pensará o leitor de outro país, durante a leitura de Viva o Povo Brasileiro, quando no capítulo 14, se vê enredado numa batalha importante da História brasileira, a do Tuiuti, reencenada à moda homérica, mas com orixás fazendo as vezes dos deuses gregos, tal como na rapsódia 14 da Ilíada?
É isso que diferencia, talvez, a produção de João Ubaldo da literatura de muitos outros escritores nacionais de sua geração, não importando se se vale da paródia ou não, na medida em que sua literatura permite uma identificação profunda do leitor estrangeiro com as grandes questões universais ali presentes, que são próprias da condição humana. Questões exploradas com grandeza na literatura canônica ocidental, que não se restringem, portanto, apenas a problemas locais, essencialmente brasileiros, ou, quando muito, dos países latino-americanos colonizados. Não se trata, assim, da literatura que tem a oferecer ao estrangeiro somente o dado exótico, o tropical, o pitoresco, produto for export, para o consumo gringo como num pacote turístico. Ainda que muitos dos elementos do “exotismo tropical brasileiro” possam se fazer presentes em algumas obras de João Ubaldo Ribeiro, eles são explorados sem populismo ou demagogia, numa perspectiva sempre ampla e ambiciosa.
O próprio chegou a declarar em diversas entrevistas que concedeu ao longo da vida, que não pensava em termos de Brasil unicamente, e sim no mundo, sem esquecer que era brasileiro. É bem possível que seja João Ubaldo Ribeiro, de nossos escritores contemporâneos, aquele que talvez melhor tenha conseguido lidar com a tensão entre o dado local e o cosmopolita, o regional e o universal, o particular e o geral, produzindo uma obra poderosa, capaz de se comunicar com leitores das mais diversas latitudes. Sob esse prisma, nossa cultura foi particularmente bem representada lá fora pela produção do escritor itaparicano.
* Ceccantini é professor de Literatura Brasileira da UNESP-Assis