As crianças, de origem indígena, viajavam de uma aldeia amazônica para San José del Guaviare, na Colômbia, quando o avião Cessna em que viajavam teve uma falha no motor e caiu. Os adultos que estavam a bordo faleceram, incluindo a mãe das crianças. Liderados pela adolescente de 13 anos, Lesly, os irmãos (de 9 e 4 anos, e um bebê de 11 meses) sobreviveram os 40 dias seguintes sozinhos no meio da selva até serem encontrados por equipes de resgate. Lesly manteve a calma e o grupo seguro e alimentado, e usou o conhecimento da floresta tropical que a mãe lhe passara.
Fabian tinha 20 anos e estava concluindo o serviço militar obrigatório na Argentina, quando os generais que lideravam seu país declararam guerra à Inglaterra pela posse da ilha das Malvinas. Junto com seus companheiros, e sem aviso prévio, o jovem foi transportado em avião militar para o meio do conflito. Com limitado treinamento, sem liderança efetiva (seu capitão abandonou a tropa quase imediatamente), ficou três meses na terra gélida (era inverno), com pouco acesso a comida, higiene e comunicação, até os argentinos serem rendidos pelos ingleses.
Mais de 640 argentinos e 250 ingleses faleceram nesse conflito. Quarenta anos se passaram. Alguns dos companheiros se deprimiram, desenvolveram alcoolismo, tiraram a própria vida. Fabian e vários dos colegas foram adiante.
Francine perdeu o pai aos 3 anos e a mãe, que sempre teve a saúde frágil, na pré-adolescência. Apesar de ter família extensa, por diversas razões, tios e avós não quiseram assumir os cuidados dela e de seus dois irmãos menores. Órfãos, abandonados, e sem recursos financeiros, foram parar em abrigos, ficando frequentemente em locais separados.
A americana passou por inúmeras casas sem nunca mais ter um lar. Atualmente, com 78 anos, Francine ainda trabalha como pesquisadora e psiquiatra clínica na Universidade Colúmbia. É casada há décadas, tem uma filha e dois netos, sendo uma pessoa afetuosa e generosa.
Conta detalhes da sua história e dos desafios pelos quais passou no livro City of One. Seus irmãos, ela também relata, tiveram uma trajetória mais difícil e não conseguiram avançar profissional e afetivamente como gostariam. O percurso de Francine não foi uma linha reta também, mas ela perseverou.
Jaime sentiu-se mal, lá pelas 22 horas, em sua própria casa. Ao chegar ao hospital, teve a primeira de quatro paradas cardíacas seguidas, três delas presenciadas pela esposa que o acompanhava. A equipe que o salvou constatou um estreitamento arterial e colocou um stent. Dias de UTI, semanas de semi-intensivo, quarto comum, uma séria infecção hospitalar, volta para casa, repouso total: ele experimentou de tudo.
Perdeu quilos de músculos, achou que nunca mais seria o mesmo. Concluiu que era hora de providenciar sua sucessão na empresa, de dividir o patrimônio. Desistiu de comprar o sonhado cachorro (para quê, se morreria logo?), melhor gastar o dinheiro comprando um local onde ser enterrado…
Uma década se passou. Com seus atuais 83 anos, reconhece que ficaram algumas sequelas físicas e sua saúde cardíaca é mais delicada. Mas voltou a se exercitar, a trabalhar, escreve colunas em jornais, não desistiu de consertar o país. Curte a vida, manteve o senso de humor, é criativo, ávido leitor, interessado, conectado com a família e com amigos, muitos inclusive mais jovens do que ele.
A maioria das pessoas é exposta a eventos potencialmente devastadores em algum momento da vida. Problemas de saúde, perdas (de pessoas, de emprego, de casa…), desastres (acidentes, terremotos, incêndios), situações de violência (assaltos, violência sexual, guerras) são exemplos de circunstâncias traumáticas.
Algumas ameaças são agudas: vivenciar ou testemunhar um assalto violento, por exemplo, ou sofrer um acidente. No caso de estressores agudos, a intensidade costuma ser elevada, mas temporária. Já o estresse resultante da adversidade crônica pode até ser menor, mas exercer um impacto repetido e cumulativo. Exemplos são exposição à violência ou maus tratos em casa, casamentos abusivos, doenças crônicas graves, ser filho de um divórcio problemático.
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Resistência contra o trauma
Não é incomum pensar que vivências difíceis como as descritas acima certamente causam feridas emocionais profundas e permanentes nas pessoas – os chamados “traumas”. No entanto, estudos científicos publicados nas últimas décadas trazem boas notícias: grande parte dos seres humanos reage a situações potencialmente traumáticas demonstrando capacidade de superação.
George Bonanno é o coordenador do Loss, Trauma, and Emotion Lab de Colúmbia, em Nova York. Ele estuda populações que foram expostas a eventos altamente estressantes, incluindo o luto, infortúnios (divórcio, perda de emprego), doenças com risco de morte (câncer, ataques cardíacos) e adversidades extremas (guerras, terremotos, ataques terroristas). Seu objetivo é analisar a maneira como os indivíduos lidam, no decorrer do tempo, com esses eventos.
Descobriu que a resiliência psicológica está no cerne do luto e do sofrimento. Ao contrário do que muitas vezes se argumenta, vivenciar esses acontecimentos como um trauma não é tão frequente quanto pensamos. Ou seja, uma coisa é passarmos por situações muito desafiadoras, penosas. Outra, diferente, é um trauma de fato ser produzido e ter efeitos adversos duradouros em nosso funcionamento e bem-estar.
Bonnano e seus colegas consideram que esses acontecimentos devem ser pensados mais como estados (difíceis e dolorosos – mas dos quais as pessoas frequentemente se recuperam) e menos como eventos gravados no corpo e na mente.
Seus estudos concluíram que há quatro trajetórias principais em populações que passam por eventos potencialmente traumáticos. A maioria das pessoas (quase 2/3 delas) apresenta uma resposta resiliente, ou seja, sente o baque, mas mantém um comportamento relativamente saudável.
Cerca de 20% das pessoas apresentam um sofrimento que altera seu desempenho, concentração, estabilidade emocional por alguns meses, e gradualmente vão melhorando até chegar próximo ao ponto em que estavam antes de ocorrer o evento – essa é a rota da recuperação.
Uma parte menor das pessoas (por volta de 9%) fica completamente tomada pela situação e pode demorar anos para se recuperar – um estado chamado de cronicidade. Finalmente, 8% dos indivíduos apresentam um início tardio: no princípio parecem reagir bem à situação, mas sintomas importantes de depressão, ansiedade e trauma aparecem com um atraso significativo.
Por que alguns conseguem sobreviver tão bem a situações extremamente estressantes, enquanto outros parecem sucumbir a elas? Uma razão diz respeito a fatores externos, à sorte ou azar, nível de apoio que cada indivíduo tem. Múltiplas situações tensas em momentos vulneráveis podem ser excessivas para qualquer um.
No entanto, uma parcela significativa da resiliência se refere à atitude, ao temperamento da pessoa. Vejam, por exemplo, o trabalho de Emily Werner, pesquisadora que coordenou um estudo de referência na psicologia ao acompanhar quase 700 crianças por 40 anos. Sua investigação apontou que crianças que tinham o que chamamos de “locus interno de controle”, ou seja, acreditavam que eram elas próprias (e não suas circunstâncias_ que determinavam seus caminhos na vida tinham posturas mais resilientes.
Consequentemente, essas crianças tiveram, com maior frequência do que as que não apresentavam tal característica, uma vida mais satisfatória quando adultos. Na verdade, essa postura de autonomia e independência (pense no exemplo de Lesly e de Francine que dei no início deste artigo) está relacionada a outros fatores, como encarar o mundo nos nossos termos, estarmos abertos a novas experiências, sermos mais otimistas , sermos capazes de regular as emoções e usar com mais eficácia nossas as habilidades (porque acreditamos mais nelas).
Há outra característica também bastante relacionada à resiliência: a flexibilidade, particularmente na maneira como encaramos os desafios. Pesquisas recentes sobre a capacidade de enfrentamento que as pessoas têm concluíram que o sucesso diante dos desafios depende menos de quais estratégias específicas usamos, e mais se elas são usadas de forma flexível, dependendo da situação.
Há circunstâncias em que é melhor tentar mudar, enquanto há outras em que a melhor alternativa é se manter estoico e suportar o estressor. A flexibilidade em situações do gênero se mostra na maneira de focar o problema a ser enfrentado (diminuindo a chance de nos curvar ao desespero), e na avaliação contínua dos recursos internos e externos que possuímos para lidar de forma eficaz como o estressor.
Isso exige que a pessoa não desista rapidamente, mas que também aceite o que não pode mudar. Da mesma forma, é necessário aprender nas situações de fracasso, ao invés de apenas se abalar. Tem gente que consegue até encontrar oportunidade e significado na adversidade. Tudo isso é flexibilidade psicológica e é um belo de um instrumento para encararmos os percalços.
Termino com uma das perguntas de um questionário validado cientificamente para medir flexibilidade e resiliência: quando os tempos estão difíceis, mesmo extremamente difíceis, você é capaz de pensar que bons momentos nos aguardam no futuro?
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade Colúmbia (EUA)