Vivek Murthy é o atual surgeon general dos Estados Unidos, algo como o médico-referência do país. Uma de suas principais funções é levar ao conhecimento da população informações científicas atualizadas sobre como melhorar a saúde e reduzir os riscos de ficar doente. Entre os assuntos que são prioridade em suas publicações, palestras e podcasts, está o que ele chama de “epidemia de solidão”.
Autor de um livro instigante a respeito, O Poder Curativo das Relações Humanas: A Importância dos Relacionamentos em um Mundo Cada Vez Mais Solitário (publicado pela Editora Sextante no Brasil), o doutor Murthy considera a solidão persistente um problema de saúde pública. E, com o perdão do trocadilho, ele não está só.
Os números variam, mas pesquisas apontam que os relatos e queixas de solidão têm crescido, e não somente entre a população mais velha. Nos EUA, um relatório da Universidade Harvard constata que um em cada três americanos reporta solidão frequente, 61% entre os jovens adultos.
No Brasil, um estudo recente detectou que 15% dos estudantes de 13 a 17 anos revelaram se sentir solitários no último ano. São números que podem estar subestimados, pois, particularmente em nossa sociedade de raízes latinas, há todo um estigma associado à solidão – algo como anunciar que ninguém gosta de nós.
Muito mais do que uma sensação desagradável, a vivência constante de solidão, que se caracteriza pela diferença entre o grau de conexões sociais que o indivíduo deseja ter e o que ele tem de fato, provoca impactos profundos na saúde. Não falo apenas de transtornos mentais.
Isolamento social e solidão aumentam os níveis de estresse e inflamação no organismo, elevando, segundo pesquisas, o risco de mortes prematuras por infarto, AVC e suicídio. Também expõem as pessoas a artrose, diabetes, demência, hospitalizações, depressão e comportamentos prejudiciais à qualidade de vida, como tabagismo, dieta desequilibrada e falta de atividade física.
Por outro lado, o estabelecimento de conexões sociais (de verdade, não apenas digitais) tem enorme impacto positivo. Em um livro-chave sobre depressão, O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras), o escritor Andrew Solomon descreve como a organização de grupos de bate-papo informal entre mulheres que conversam inclusive sobre tópicos e vivências difíceis ameniza a longa e excruciante temporada de inverno da Groenlândia, evitando potenciais suicídios.
A literatura científica corrobora esses resultados. Uma revisão sistemática publicada em 2022 aponta que os vínculos sociais estão entre os determinantes centrais da saúde mental. Para você ter melhor noção disso, vale compartilhar um estudo com 100 mil ingleses que constatou que a troca de confidências e visitas entre amigos e familiares é o principal fator de proteção modificável (entre mais de 100) contra a depressão. A palavra “modificável” nos interessa aqui porque indica caminhos que nós podemos (ou não) tomar.
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Do profundo ao casual
E não são apenas as conexões sociais profundas, como as mantidas dentro da família, que beneficiam nossa saúde. Hoje existe um campo de pesquisa voltado para as vantagens das chamadas weak ties, ou relações casuais. Elas são definidas como encontros de baixa intensidade emocional e intimidade limitada, como aqueles contatos mínimos entre estranhos no metrô ou na padaria.
Um dos grandes nomes nessa área de investigação é Gillian Sandstrom, uma professora de psicologia britânica originalmente formada em matemática que mudou seu foco profissional após trabalhar dez anos como cientista da computação. Debruçando-se sobre o assunto, ela descobriu que mesmo interações sociais positivas e limitadas com pessoas que pouco ou nada conhecemos aumentam nosso bem-estar.
Em um dos seus estudos, os participantes podiam se engajar em dois tipos de interação com um barista. As pessoas que sorriam, olhavam no olho e tinham uma breve conversa (ou seja, estabeleciam uma interação social transitória) descreviam maior sensação de bem-estar e pertencimento em comparação com aquelas que mantinham o contato apenas como uma transação impessoal e comercial.
A questão é que, como grande parte das nossas interações diárias se dá com gente que mal conhecemos (colegas de ginástica, vizinhos, garçons e recepcionistas, por exemplo), tais relações podem ser ótimas oportunidades de trocar informação, apoio e afeto. Em resumo, elas não devem ser ignoradas.
Indo ao encontro desses achados, várias áreas ligadas à saúde têm se dedicado a investigar o nível de solidão dos pacientes e os efeitos da “prescrição” de meios para estabelecer ou ampliar suas conexões sociais. Já existe uma intervenção batizada de social prescribing que consiste justamente em disponibilizar a pessoas atendidas pela rede de atenção básica atividades para elevar seu contato com os outros e o acesso a serviços sociais. Tudo de forma organizada.
A prática tem sido cada vez mais adotada por países como Canadá, Finlândia e Inglaterra, que reconhecem que a melhora da saúde da população depende de uma expansão no conceito e nos tipos de cuidado, muito além dos modelos biomédicos tradicionais e confinados a espaços clínicos.
No Brasil, talvez de forma menos metódica, isso já ocorre em alguns lugares. No estado de São Paulo, por exemplo, algumas UBS (unidades básicas de saúde) oferecem encontros de meditação, caminhadas, produção de artesanato, entre outras atividades. Para aumentar as chances de essa abordagem contribuir para a saúde da comunidade, não resta dúvida que investimento, regularidade e integração com outros serviços são fundamentais.
A experiência do isolamento social e da criatividade para nos comunicarmos durante o período mais duro da pandemia de Covid-19 – vocês se lembram dos italianos cantando para os outros nas sacadas, dos nova-iorquinos batendo palmas no fim do dia para os profissionais de saúde ou dos netos ensinando os avós a usarem o Zoom? – marcou nossa época e geração.
E a história não terminou. Como afirma o doutor Murthy, o surgeon general dos EUA, “enfrentar a crise de solidão e isolamento é um dos grandes desafios da nossa geração”.