O comportamento suicida entre adolescentes não é algo raro. Estatísticas em vários países, entre eles EUA, Inglaterra e Brasil, refletem uma tendência preocupante: há mais de uma década, as taxas de comportamento autodestrutivo entre jovens vêm aumentando. Isso engloba de automutilação a ideação e tentativas de suicídio propriamente ditas.
Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) registra um aumento sistemático desse fenômeno nos EUA entre 1999 e 2020, particularmente entre meninas. Uma pesquisa do CDC (Center for Disease Control and Prevention) constatou que, em 2021, quase 60% das alunas do ensino médio nesse país tiveram sentimentos persistentes de tristeza ou desesperança durante o ano anterior e quase 25% alimentaram desejo de morte.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) já destaca que o suicídio é a quarta principal causa de morte entre jovens de 15 a 19 anos. No Brasil, entre 2011 e 2022, o maior aumento nas taxas de suicídio ocorreu entre pessoas de 10 a 24 anos, com as notificações de autolesões registrando um crescimento de 29%.
Esses dados sublinham a complexidade do problema e a necessidade urgente de enfrentá-lo, mostrando que, embora o bullying e as pressões no ambiente escolar sejam relevantes, eles são apenas parte de uma questão mais ampla.
Para entender e abordar esse quadro, é essencial reconhecer o que está por trás do comportamento suicida na adolescência: ele decorre de uma combinação de fatores biológicos, emocionais, ambientais e sociais. O cérebro do adolescente passa por uma fase de desenvolvimento único e vulnerável, em que as áreas responsáveis pelas emoções são altamente ativadas.
Isso os torna particularmente sensíveis a experiências emocionais. Simultaneamente, o córtex pré-frontal, que regula impulsos e ajuda na tomada de decisões racionais, ainda está em desenvolvimento. Essa assimetria, ou “desconexão” entre uma intensa resposta emocional e uma capacidade de autorregulação incompleta, pode desembocar em um cenário perigoso, em que frustrações e rejeições são percebidas de maneira exacerbada, induzindo comportamentos impulsivos e até tentativas de suicídio.
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Onde mora o perigo
Na prática, o que quer dizer isso? Uma rejeição social, como ser excluído temporariamente por um grupo de amigos, pode ser vivida como uma experiência esmagadora. O cérebro adolescente interpreta isso como algo ameaçador e mesmo definitivo para o bem-estar do indivíduo.
Sua capacidade de lidar racionalmente com essa emoção — como um adulto supostamente faria, colocando as coisas em perspectiva e buscando soluções — ainda está em construção. A combinação de emoções intensas e a pouca habilidade de moderação interna podem levar a um desespero momentâneo, impulsionando pensamentos autodestrutivos como meio de aliviar a dor aparentemente insuportável.
Mas, se o grau de maturidade do cérebro dos adolescentes não mudou nos últimos anos, o que pode explicar o recente aumento das taxas? Uma possibilidade é o impacto das redes sociais na vida dos adolescentes de hoje.
Um crescente corpo de pesquisas sugere que o uso intenso dessas plataformas está diretamente associado ao aumento de comportamentos suicidas entre jovens. Jean Twenge, professora de psicologia da Universidade Estadual de San Diego, nos EUA, conduziu um estudo mostrando que adolescentes que passam mais de três horas por dia em redes como Instagram e TikTok apresentam níveis mais elevados de ansiedade, depressão e pensamentos suicidas. Um fator importante, segundo Twenge, é a redução do tempo de sono associada com o tempo nas redes sociais.
Yvonne Kelly, professora de epidemiologia na University College London, na Inglaterra, demonstrou que o uso excessivo das redes pode intensificar sentimentos de exclusão e inferioridade, contribuindo para o aumento de atitudes de autolesão e pensamentos suicidas, especialmente entre as meninas.
Já Andrew Przybylski, diretor de pesquisa do Oxford Internet Institute, também em solo britânico, mostrou em pesquisas que a exposição prolongada a interações negativas online, como o cyberbullying, está fortemente correlacionada ao aumento do risco de suicídio. Essas plataformas, ao estimular a comparação excessiva e a confrontação social e apontar padrões inalcançáveis de vida e aparência, acabam agravando vulnerabilidades emocionais preexistentes, criando um terreno fértil para crises emocionais e existenciais
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Além da superfície
Recentemente, o suicídio de um adolescente em São Paulo trouxe à tona questões profundas e dolorosas. Após conquistar uma bolsa de estudos em uma das escolas mais prestigiadas da cidade, a promessa de um futuro melhor parecia ao seu alcance. No entanto, segundo familiares, sua vivência na vida escolar foi marcada por isolamento e sofrimento.
Pouco antes de sua morte, ele compartilhou um áudio, agora amplamente divulgado, no qual expressava sua dor, raiva e desespero. A tragédia gerou discussões polarizadas (exponencializadas talvez pelo fato dele ser gay, preto e de origem humilde) e genericamente superficiais. Muitas das manifestações, tanto na mídia como nas redes sociais, primaram por culpabilizar exclusivamente a escola e politizar o ocorrido.
Essas abordagens ignoraram a complexidade do problema e no final das contas prejudicaram todos os envolvidos. Embora a demanda por respostas imediatas seja compreensível, é essencial voltar o foco para o que realmente precisa ser feito e levantar a verdadeira questão: qual problema estamos tentando resolver?
A verdade é que não há milagres para lidar com os inúmeros fatores que podem levar um adolescente a considerar ou realizar um suicídio. São profundas as transformações sociais que marcam essa fase da vida em que é fundamental o apoio dos amigos.
Nesse momento, a autopercepção muitas vezes contraria fantasias e desejos do que o adolescente gostaria de ser. Não à toa, a adolescência dá início à busca por relacionamentos românticos (nem sempre bem-sucedidos) e à maior autonomia (que às vezes demoram a dominar). Para alguns jovens, essas e outras mudanças geram estresse, o que pode contribuir para o aumento de distúrbios afetivos graves.
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De onde ele vem?
As principais teorias sobre suicídio buscam entender como os fatores de risco e os estressores contribuem para o surgimento de pensamentos e comportamentos suicidas.
A teoria das necessidades interpessoais, conhecida como IPTS (Interpersonal Psychological Theory of Suicide), identifica dois fatores centrais que elevam o risco de suicídio: a sensação de “pertencimento frustrado” e a percepção de ser um “fardo” para os outros.
A “sensação de pertencimento frustrado” ocorre quando o indivíduo sente que não tem laços significativos ou conexões sociais sólidas. Em adolescentes, essa sensação pode aflorar quando não se sentem compreendidos, valorizados ou aceitos pelos amigos, familiares ou pela sociedade em geral.
Essa desconexão emocional e social cria um sentimento de solidão extrema, como se, mesmo estando fisicamente presentes, fossem indesejados e totalmente invisíveis ao grupo. Quando essa sensação persiste, pode gerar um profundo desespero.
Já a “percepção de ser um fardo” é quando sentem que sua presença ou existência é um peso para os outros. Adolescentes que enfrentam dificuldades emocionais, como depressão ou baixa autoestima, podem começar a interpretar seus desafios como inconvenientes ou prejudiciais para suas famílias, amigos ou até para a sociedade.
Podem acreditar, de maneira distorcida, que seus problemas são insolúveis e que, ao invés de merecerem ajuda, sua ausência seria melhor para todos ao seu redor: seria um alívio. Essa percepção gera uma camada extra de desespero: o adolescente passa a ver a própria vida como sem valor e perniciosa para os outros.
Em determinados contextos, questões como etnia, orientação sexual e nível socioeconômico podem amplificar essas sensações. A pressão de lidar com estigmas sociais e falta de aceitação intensificam a desconexão e a percepção de ser um “peso”, levando a um agravamento das vulnerabilidades emocionais. Para esses adolescentes, a sensação de isolamento social e a crença de que sua existência prejudica os outros se tornam extremamente perigosas, especialmente quando associadas ao acesso a meios letais.
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Táticas preventivas
Para enfrentar esses desafios, uma estratégia potencialmente eficaz é o Plano de Segurança para Prevenção do Suicídio. Essa intervenção preventiva baseada em evidências ajuda indivíduos com ideação suicida a manter a segurança durante uma crise.
O Plano parte do pressuposto de que, em momentos de sofrimento intenso, a capacidade de pensar claramente e tomar decisões racionais é reduzida. O objetivo é fornecer uma estratégia estruturada para reduzir a angústia e evitar ações impulsivas. A estrutura do Plano envolve várias etapas importantes: reconhecer os sinais de alerta de uma crise, aplicar estratégias de enfrentamento e distração, identificar pessoas de apoio, minimizar o acesso a meios letais e procurar ajuda profissional.
Ele já é amplamente implementado nos EUA em clínicas de saúde mental, departamentos de emergência, hospitais e centros de atendimento comunitário.
Embora seja impossível eliminar completamente o risco de comportamentos autodestrutivos, há medidas que pais e educadores podem adotar para reduzir significativamente as chances de filhos ou alunos desenvolverem essas tendências. Uma abordagem fundamental é adotar comportamentos saudáveis e resilientes, que envolvam a capacidade de lidar com crises e momentos de intenso sofrimento.
Crianças e adolescentes aprendem com modelos, o que torna crucial que os adultos ao redor demonstrem habilidades saudáveis de regulação emocional, tais como o gerenciamento do estresse e a capacidade de se reerguer diante de desafios.
Criar um ambiente de apoio e aceitação, em casa e nas escolas, é um fator de proteção poderoso contra comportamentos autodestrutivos. Atitudes como não discriminação, maior tolerância, empatia e a valorização da diversidade, incluindo orientação sexual, podem auxiliar a reduzir o sentimento de isolamento e desconexão que muitas vezes precedem pensamentos suicidas. O suporte social é um dos fatores mais consistentes na redução do risco de suicídio entre adolescentes.
Além disso, encorajar hábitos salutares, como alimentação balanceada, prática regular de exercícios físicos e a construção de relações sociais saudáveis pode desempenhar um papel compensatório na prevenção do desespero emocional. Evitar o uso de álcool e drogas, principalmente como forma de lidar com emoções negativas, é outra estratégia comprovada.
Dados do National Institute on Drug Abuse, nos EUA, mostram que adolescentes que utilizam substâncias para mascarar sofrimento emocional apresentam um risco significativamente maior de desenvolver comportamentos suicidas.
No entanto, é vital lembrar que, apesar de todos esses esforços, nenhum adulto pode controlar completamente o comportamento de um adolescente. É onipotência acreditar que é possível prevenir totalmente o suicídio ou que sempre haverá um culpado.
Assim como vemos nas taxas de transtorno de uso de substâncias, apesar de todas as tentativas de prevenção, o controle absoluto não é factível. O objetivo, portanto, é minimizar os riscos e oferecer suporte contínuo, reconhecendo que a vulnerabilidade faz parte da experiência humana.
Finalmente, é essencial refletir sobre o impacto emocional que a tragédia do suicídio tem sobre todos os envolvidos. A psiquiatra inglesa Rachel Gibbons, em um corajoso artigo recente, relatou a culpa devastadora que sentiu após o suicídio de seus primeiros pacientes, quase levando-a a abandonar sua carreira.
Motivada por essa experiência, ela criou grupos de apoio ao luto, ouvindo mais de 1 500 relatos de familiares, amigos e profissionais de saúde que perderam pessoas para o suicídio. Gibbons percebeu que, no processo de luto, é comum que as pessoas procurem responsáveis pelo acontecido – seja em si mesmas, em outros ou em instituições.
Ela também aprendeu que existem limites para a prevenção do suicídio e que a crença de que ele é totalmente evitável pode gerar uma culpa esmagadora nos sobreviventes. Por isso, oferecer compreensão e apoio emocional é essencial para ajudar os enlutados a enfrentar essa dor de maneira mais equilibrada e, eventualmente, serena.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora da Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e professora da Universidade Colúmbia e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)