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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
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“Vote pensando nos famintos” – entrevista com o padre Julio Lancellotti

A Rodolfo Capler, o sacerdote católico falou como reage aos ataques pessoais e expressou o que pensa sobre atuação dos evangélicos na política

Por Rodolfo Capler
25 set 2022, 11h41
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  • Há quarenta anos trabalhando com a população em situação de rua, o padre Julio Lancellotti é hoje um dos grandes referenciais da fé católica no Brasil. Responsável pela Paróquia São Miguel Arcanjo no bairro da Mooca em São Paulo, atualmente é Vigário Episcopal para a população em situação de rua da Arquidiocese de São Paulo. Durante os piores dias da pandemia, o sacerdote dos pobres ficou conhecido do público por mostrar-se renitente na prática do seu ministério de caridade. Usando proteção facial contra o novo coronavírus, continuou servindo marmita às pessoas usuárias de crack e, em momento algum, abandonou o seu posto. Movido por terna compaixão, com frequência dizia naqueles dias sombrios: “Use máscara e seja autêntico”.

    A ação caridosa e corajosa do pároco repercutiu mundo afora. Grandes veículos internacionais de comunicação noticiaram o seu trabalho humanitário. Naqueles dias o próprio Papa Francisco ligou a ele do Vaticano encorajando-o “a continuar seu ministério junto aos pobres”. Em 2021, o padre Lancellotti venceu o prêmio Zilda Arns de Direitos Humanos. Recebeu nas mãos o diploma concedido como forma de reconhecimento às pessoas e instituições que trabalham ativamente em defesa dos direitos das pessoas idosas. No mesmo ano, esteve num viaduto na zona leste de São Paulo para derrubar – com as mesmas mãos – pedras que foram colocadas pela prefeitura como medida para evitar moradores de rua.

    Julio Lancellotti prossegue como um sinal de esperança em meio ao caos social em que o Brasil se encontra. Com 50 milhões de pessoas vivendo na pobreza e 13 milhões em extrema pobreza, hoje mais de 33 milhões de pessoas passam fome no país. Abandonadas pelo Estado, as populações mais vulneráveis são descartadas e desprezadas pelas elites econômicas que enxergam o trabalho do padre como uma forma de manutenção da miséria. Alvo de acusações desmoralizantes por parte de políticos conservadores – como aquela apresentada, via rede social, pela deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que o criticou afirmando que “a distribuição de alimentos só ajuda o crime” – Lancellotti mantém-se encorajado na luta em prol dos excluídos por saber que “os ataques são naturais” àqueles que se colocam ao lado dos oprimidos.

    Em entrevista exclusiva à coluna, Lancellotti nos falou sobre sua vocação religiosa, fez críticas à postura omissa dos cristãos paulistanos em relação aos marginalizados sociais, defendeu a extinção da Bancada Evangélica no Congresso Nacional e encorajou o eleitor brasileiro a fazer do seu voto “um sinal de esperança, nunca de vingança ou de ódio”.

    Leia abaixo a entrevista completa:

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    Rodolfo Capler — Como se deu a sua vocação para o sacerdócio católico?

    Julio Lancellotti — A vocação não é algo sobrenatural; é uma resposta. A palavra em latim vocare é uma palavra de resposta. Vocação é algo que se constrói. Ninguém tem uma vocação pronta. Eu sou um padre em construção, pois, não sou tudo que um sacerdote católico tem que ser. A vocação – sendo uma resposta – se dá concretamente no tempo e no espaço. Por exemplo, hoje um padre no Brasil tem que dar determinadas respostas, diferentemente do que acontece com um sacerdote que vive Moçambique. Algumas coisas são comuns a ambos, tais como a fé católica e o compromisso institucional, entretanto, cada um responderá ao chamado de Deus de formas diferentes.

    Rodolfo Capler — O senhor trabalha na assistência de pessoas em situação de rua há mais de 40 anos e atua como coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo. Quais são os pilares que sustentam o seu ministério?

    Julio Lancellotti — Os pilares que sustentam meu ministério são os seguintes: a resposta de fé; o seguimento de Jesus como mestre e senhor; a força do Espírito Santo que renova a vida; o discernimento espiritual que me capacita a entender as situações por meio do critério da pessoa de Jesus Cristo; a confiança no amor de Deus; a solidariedade; e a fraternidade.

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    Rodolfo Capler — Muitas pessoas defendem a tese de que a prática da caridade têm muitos efeitos colaterais. Um exemplo disso é o livro “A máfia dos mendigos – como a caridade aumenta a miséria” (2019), do teólogo batista Yago Martins. Após fingir ser um morador de rua durante o período de 1 ano, Martins publicou suas experiências e concluiu que existe uma indústria da miséria, que usa o discurso da justiça social para auferir altos rendimentos, monetários e simbólicos. Como o senhor rebate tais críticas ao ministério de caridade?

    Julio Lancellotti — A caridade é uma das virtudes teologais. Infelizmente, nós desfiguramos esse conceito teológico. A compreensão que se tem é que caridade é algo sentimental que se resume a dar esmolas. A verdadeira caridade acontece quando nós partilhamos aquilo que de fato nos fará falta. Se existe uma indústria da miséria eu desconheço. Transitar por determinados locais públicos para fazer uma pesquisa de campo é uma coisa. Outra, totalmente diferente, é dormir na rua por um ano sem ter uma casa para a qual voltar ou ficar sem tomar banho. Eu convivo com a população em situação de rua há mais de 40 anos. Confesso que, vez ou outra, há determinadas situações em que algumas pessoas desfiguram o ministério da caridade. Inclusive, utilizamos um chavão das ruas que diz: “O golpe está aí, caí em quer”. Infelizmente, isso acontece, pois, sempre há pessoas mal intencionadas em todas as instâncias da sociedade. Mas daí, afirmar que há uma indústria da mendicância é um exagero e uma desonestidade com o bom trabalho humanitário que muita gente faz nas ruas. Penso que conclusões como essa não passam de uma forma de criminalização dos pobres.

    Rodolfo Capler — Segundo um censo que vem sendo realizado pela prefeitura de São Paulo, a capital paulista conta com 526 pontos de concentração de crianças e adolescentes em situação de rua e têm quase 32 mil pessoas vivendo nessas condições. O que esses números dizem sobre os cristãos que vivem na cidade?

    Julio Lancellotti — Nunca tivemos tantas igrejas na cidade de São Paulo. São cerca de 6 mil igrejas evangélicas e, aproximadamente, 500 paróquias espalhadas pela capital paulista. Há também a presença de mesquitas, sinagogas, terreiros e, de todos os tipos de locais de cultos religiosos. Do Largo da Concórdia até a Rua Belém — passando pelas avenidas Rangel Pestana e Celso Garcia — você encontra 60 igrejas diferentes. Alguém que estiver visitando São Paulo, ao contemplar tantos templos religiosos, dirá: “Mas que cidade religiosa!”, e, concluirá: “Nessa cidade não deve haver pessoas passando fome e também não deve existir crianças nas ruas”. Lamentavelmente, a maioria das igrejas não acolhe os mais vulneráveis. Como disse o grande pensador austríaco Ivan Illich: “Quando uma cidade tem muitos hospitais é porque ali existem muitos doentes. Quando há muitas escolas deve haver muita ignorância. Quando há muitas igrejas é porque há pouca religião”. Muitos prédios religiosos numa cidade não significa que haja amor entre os seus cidadãos. Entre eles pode haver segregação, rejeição, omissão e violência. Eu me faço a seguinte pergunta: essas quase 32 mil pessoas em situação de rua são bem-vindas nessas igrejas espalhadas pela cidade? Se eles pedirem água e comida, serão atendidos com dignidade nos templos?

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    Rodolfo Capler — Na posição de um observador externo ao evangelicalismo, como o senhor enxerga o envolvimento dos evangélicos brasileiros com a política: eles estão contribuindo para o bem comum ou estão, apenas, fazendo a manutenção de um projeto de poder? 

    Julio Lancellotti — Não podemos generalizar. Em todas as religiões há fundamentalistas. Penso que o fundamentalismo é o grande problema numa religião. Evangélicos fundamentalistas na política são um problema, mas, não podemos nos esquecer de que há evangélicos na vida pública, muito comprometidos com a libertação do povo. Vide o pastor Henrique Vieira no Rio de Janeiro. Defendo que a Bancada Evangélica (como também as bancadas da Bala, do Boi e da Bola) deve ser desfeita, porquanto, atua segundo interesses corporativos, fazendo a instrumentalização da fé para fins políticos. Longe disso, necessitamos de representantes políticos que trabalhem em prol do bem comum.

    Rodolfo Capler — Por que a Teologia da Libertação (que prega a opção preferencial de Deus pelos excluídos), não faz tanto sucesso entre os pobres do Brasil?

    Julio Lancellotti — Teologia não existe para fazer sucesso. Não é esse o objetivo das elaborações teológicas. Por exemplo, a chamada Teologia da Prosperidade — sendo uma instrumentalização da religião evangélica — têm muitos adeptos. Isso não faz dela uma teologia, pois, a mensagem do evangelho de Jesus nunca enfatizou o enriquecimento pessoal. No que diz respeito a Teologia da Libertação é importante que se diga que ela é umas das teologias da Igreja, que continua influenciando não apenas o mundo católico, como também muitos grupos protestantes. Devemos nos lembrar que um dos grandes pilares da Teologia da Libertação no Brasil foi o Rubem Alves, que era teólogo protestante. O maior biblista da libertação foi o luterano Milton Schwantes. Ou seja, a Teologia da Libertação não é uma pequena corrente de pensamento teológico restrita à periferia da Igreja Católica; é uma reflexão sobre a ação de Deus na história.

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    Rodolfo Capler — Em 2021 o senhor recebeu o prêmio Zilda Arns de Direitos Humanos. Para o senhor, qual é a importância de uma homenagem como essa?

    Julio Lancellotti — Para mim, foi muito tocante, porque eu conhecia a doutora Zilda Arns e trabalhei junto com ela em São Paulo. Quando ela veio à capital paulista para implantar a Pastoral da Criança, eu a acompanhei em muitas favelas e participei de muitos treinamentos ministrados por ela. Receber o prêmio Zilda Arns foi como ter sido afagado por ela.

    Rodolfo Capler — Quais são suas maiores influências dentro do Cristianismo?

    Julio Lancellotti — A minha maior influência é a do próprio Jesus Cristo. Entretanto, tive o privilégio de conviver com Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, que me inspiraram na caminhada espiritual. Menciono também o Leonardo Boff (que foi meu professor), o Enrique Dussel, a Ana Flora Anderson e o Gilberto Gorgulho. Afora Jesus Cristo, a pessoa que mais moldou meu modo de pensar e a minha prática de fé foi o padre belga-brasileiro José Conblin — um dos maiores teólogos da Teologia da Libertação, pai da chamada Teologia da Enxada.

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    Rodolfo Capler — O senhor tem sido alvo de frequentes ataques virtuais por parte de políticos, influencers digitais e de fiéis católicos, que tentam, a todo custo, difamá-lo com acusações desmoralizantes. Como o senhor consegue manter-se perseverante em seu ministério em meio a tantos ataques pessoais?

    Julio Lancellotti — Receber ataques é natural para quem está na luta. Eu escolhi o lado dos oprimidos! Aprendi que se você se posiciona ao do lado dos feridos, você será ferido. Quando você está a favor dos rejeitados, você será rejeitado. Eu me lembro muito de um ditado que aprendi na minha infância, que era o seguinte: “Quem saí na chuva vai se molhar”. Eu não luto para fazer sucesso, eu luto para ser fiel. Estou certo de que sairei derrotado de muitas batalhas nas quais entrei. O que me motiva a continuar é que sei que a minha luta é histórica. Não fui eu quem a comecei. Eu venho de uma luta que inclui Santo Oscar Romero, Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Dandara, irmã Dorothy Stang, Dom Aloísio Lorscheider, Santos Dias da Silva e muitos outros. Na luta contra a desigualdade social sempre haverá conflitos. Qualquer pessoa que se levante para libertar os oprimidos será violentamente atacada.

    Rodolfo Capler — Na sua opinião, quais são as maiores contribuições do Papa Francisco para a Igreja do novo milênio?

    Julio Lancellotti — O Papa Francisco pôs a Igreja em saída. Ele tem uma visão muito clara do mundo em que vivemos. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium corrobora isso que estou dizendo. Neste documento ele se refere aos “descartados” como resultado da lógica do neoliberalismo. Por fim, ele afirma não haver como mudar o processo de descarte de pessoas humanas se não for por meio da mudança do sistema. O Papa Francisco inovou com a encíclica Laudato Si’ e agora com a encíclica Fratelli Tutii. Ele aponta um caminho diferente, de despojamento, de proximidade e de encontro.

    Rodolfo Capler — Qual mensagem o senhor gostaria de deixar para os eleitores e eleitoras brasileiros?

    Julio Lancellotti — Não vote pensando em seus próprios interesses. Vote pensando nos famintos, nos abandonados, nos povos indígenas, nos quilombolas, nos grupos LGBTQIA+ e em todos aqueles que são rejeitados. Faça do teu voto um sinal de esperança, nunca de vingança ou de ódio.

    * Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP

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