No Alto Xingu, região localizada dentro do Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso, comunidades indígenas recém-contatadas tentam manter sua cultura praticamente intacta, mas as tradições, costumes e a falta de entendimento das regras sanitárias na pandemia têm gerado preocupação entre indigenistas e integrantes do Ministério Público. No local, indígenas têm sofrido com a disseminação da Covid-19, que já atingiu pelo menos quatro etnias de forma agressiva: os Kalapalo, os Yawalapiti, os Kamaiurá e os Nahukuá.
Em conversa com a coluna, autoridades que atuam na proteção das comunidades indígenas afirmaram que têm recebido vários pedidos de socorro por parte dos indígenas do Alto Xingu. Com aspectos culturais muito rígidos, é difícil implementar protocolos de segurança na região e, segundo esses relatos, o governo não se preparou para contatar esses indígenas e fazê-los compreender, de forma clara, a gravidade da situação.
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Clique e AssineDe acordo com a Constituição, o Estado tem a obrigação de respeitar as peculiaridades culturais dos povos indígenas na entrega também do serviço público de Saúde. Isso porque as etnias têm o direito de preservar suas tradições em todos os aspectos. Então, os protocolos de saúde de combate à Covid-19 deveriam ser feitos de uma forma que atenda os povos originários. Segundo esses relatos à coluna, não foi produzido, por exemplo, material com explicações sobre a doença na língua materna dos indígenas do Alto Xingu.
Como parte da cultura desses povos, a vida em conjunto, que envolve a moradia em ocas com cerca de 30 pessoas e o compartilhamento da comida, com o mingau sendo retirado do mesmo balde com a mesma cuia, aumenta o risco de disseminação do coronavírus. Além disso, os indígenas observaram que todos os parentes que, após contaminados, foram entubados por conta da Covid-19, acabaram falecendo. A partir desses casos, os membros dessas etnias acreditam que a entubação é responsável pelas mortes e, por isso, têm escondido os doentes em suas aldeias para que eles não sejam tratados pelas equipes de saúde.
Outro grave problema tem a ver com os preparativos para o sepultamento dos pacientes contaminados. Por orientação das equipes de saúde, os caixões não devem ser abertos. No entanto, para os indígenas, o enterro é um ritual importante e envolve a preparação e pintura do corpo, com contato direto dos integrantes da comunidade com o ente falecido. Após o preparo do corpo, o enterro acontece no centro da aldeia. Só assim, o indígena seria recebido na aldeia do céu. Um ano após o sepultamento, os Indígenas ainda realizam o ritual kuarup, quando acreditam que há a possibilidade de ressuscitamento do parente.
Com as escassas orientações das equipes de saúde, os indígenas têm aberto os caixões para manter seus rituais e cerimônias. Esse contato direto com corpos contaminados tem agravado a situação nas comunidades. Outra crença dos indígenas é a de que o coronavírus e as mortes têm acontecido a mando do feiticeiro, a figura que, segundo eles, é o grande causador do mal nas aldeias. “Todo o universo mágico deles impede que eles compreendam com o mínimo de perfeição o que preciso fazer”, relata uma autoridade à coluna sobre a grave situação local.
Segundo especialistas, nos últimos 20 dias, já morreram cinco caciques na região do Alto Xingu. A previsão é de que, em 10 dias, o número de mortes aumente de forma significativa, uma vez que os indígenas não compreendem os riscos e os cuidados que devem ter para impedir o avanço da doença e isso não teria sido repassado da forma correta por agentes do governo. Os dados oficiais epidemiológicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, sobre a reserva do Xingu – que abrange o Alto, Médio, Baixo e Leste – já registrou cinco óbitos, 71 casos confirmados e 68 suspeitos. A maioria, contudo, no Alto Xingu.
Para além da trágica perda de vidas, as mortes trazem outra ameaça real a esses povos, já que elas tem atingido os anciões e caciques, que guardam a memória das aldeias: a de que culturas preservadas há centenas de anos simplesmente sejam extintas. Na avaliação de promotores e indigenistas, línguas que participaram da construção da história do país podem deixar de existir pelo descuido e a falta de organização prévia – o planejamento especifico para esses povos em meio a uma pandemia global.