Pablo Marçal deve ir aos debates?
Em artigo enviado à coluna, o cientista político Rodrigo Vicente Silva analisa os argumentos prós e contra a participação do ex-coach
Imagine uma cidade de mais de meio milhão de habitantes que tenha o atual prefeito em primeiro lugar nas pesquisas, com mais de 50% do votos, mas que a regra eleitoral não obrigue veículos de rádio e televisão a chamarem o incumbente aos debates. A cidade existe e é Joinville, a maior cidade do estado de Santa Catarina, maior até que a própria capital, Florianópolis. O atual prefeito Adriano Silva, do partido Novo, está, ao menos nas poucas pesquisas que saíram por lá, com chances de vencer ainda no primeiro turno. Faço a provocação porque parece que a resposta vem fácil.
Ninguém se imagina não convidando para um debate um candidato que figure neste patamar às vésperas de uma eleição. Mas cogitamos não convidar Pablo Marçal para os debates em São Paulo. De antemão, eu cravo aqui: é para mim, leitor, absurdamente assustador que um candidato com as características do ex-coach esteja entre os primeiros colocados na maior cidade do país. Há, contudo, 20% do eleitorado paulistano – e isso, assustadoramente, pode ser maior, porque há a chance de termos um eleitor envergonhado por aí – que acredita que Marçal possa ser a melhor opção para a cidade. Sim, eles existem. São nossos parentes, conhecidos, colegas de trabalho, vizinhos e, para os mais plurais, são até amigos.
As correntes que cogitam Marçal fora dos debates se dividem ao menos em duas perspectivas: os institucionalistas e os ordeiros democráticos. Ambos têm alguma razão, claro, mas é preciso repensar os argumentos. No campo dos institucionalistas estão, acima de tudo, os cientistas políticos, em especial os que acreditam que partidos políticos fortes são essenciais para o bom funcionamento da democracia. Eles estão absurdamente corretos. Por outro lado, os ordeiros democráticos entendem que um ser que não respeita coisa alguma não deve ser convidado para debates televisionados, porque ele não quer saber de regras. Igualmente é difícil discordar deles.
Não sei, contudo, se estamos atacando os pontos certos. Ou melhor, há, como disse, razão em ambos, mas duvido que ir por esse caminho seja a solução. Deixar de convidar alguém porque seu partido não possui representatividade mínima parece ser uma defesa importante do papel dos partidos políticos, mas está longe de ser algo que tenha funcionalidade frente os desafios que enfrentamos na política atual. Ramagem no Rio de Janeiro tem a obrigatoriedade de ser convidado, nem por isso a qualidade do debate será maior pela presença do candidato do PL.
Tampouco parece-me que teremos uma defesa mais enfática da democracia frente a participação de candidatos como ele, assim como já foi com Russomanno em São Paulo no passado, bem como outros tantos candidatos por aí, que têm sua presença assegurada em debates, mesmo que espalhem negacionismos e mentiras.
O PL de Waldemar da Costa Neto é o partido de maior representatividade na Câmara hoje. De novo, não vejo este fato como uma defesa assegurada da democracia. Os defensores de partidos dirão que sim. Partidos institucionalizados tendem a ser sistemáticos porque dependem do jogo para estarem ativos. Dessa forma, funcionariam como balizadores do processo institucionalizado das democracias. Será mesmo? Talvez nos tempos de golpes com tanques nas ruas e militares fardados isso se mostrasse essencial. Em tempos de enfraquecimento intrainstitucional, tenho dúvidas.
Steven Levitsky publicou uma análise interessantíssima no Jornal Folha de S.Paulo no último final de semana. O autor de “Como as democracias morrem” e de “Como salvar a democracia” lembra que mesmo com toda a institucionalidade, importância e representatividade do Partido Republicano não foi possível brecar a debandada em apoio a Donald Trump e à tentativa de golpe com a invasão do Capitólio no 6 de janeiro.
O autor lembra que mais do que a representatividade e a importância dos partidos políticos, frise-se que são essenciais, é necessário que haja instituições contramajoritárias com pluralidade. Cita exemplos complexos para os Estados Unidos como o excesso de representação versus a falta de proporcionalidade no Senado, a vitaliciedade da Suprema Corte, e, em especial, a existência de um colégio eleitoral em uma democracia do tamanho da americana, algo inédito no mundo. Agora imagine Trump reeleito e o buraco em que os Estados Unidos devem se enfiar.
Se buscarmos defesa para os que alegam que candidatos como Marçal não sejam convidados pela questão da civilidade e do respeito ao processo democrático a coisa descamba para um caminho mais complicado do que a defesa institucionalista dos partidos. Ora, como dizer quem é certo e quem é errado a estar em debates, sem que haja regras bem estabelecidas? O candidato de Joinville é educado e respeitoso e Marçal um brutamontes – talvez seja por aí mesmo – e por isso o primeiro deve estar debatendo, ao passo que o candidato do PRTB não? Veja o precedente que estamos abrindo. Será que é legítimo a imprensa ter essa tutela toda?
O jornalista Leão Serva levantou uma tese mais ou menos nesta lógica em artigo publicado esta semana, dias depois do debate em que mediou na TV Cultura e que acabou com a cadeirada do candidato Datena para cima do candidato Marçal. Ademais, argumentam, assim como o fez Serva, que mais de dois terços do conteúdo, em especial os cortes usados nas redes sociais, provém de aparições nas emissoras de televisão e participações em sabatinas de veículos variados de comunicação (rádio, jornal impresso, portais). Ou seja, estariam se valendo dessas participações para pôr fogo na internet e crescer na popularidade digital. Tudo de acordo também, mas igualmente complexo.
Não nos esqueçamos que há algumas questões não solucionadas no quesito prático como as regras para debates e sabatinas em outros espaços que não os de radiodifusão, uma vez que estes são concessões, ao passo que os demais veículos seriam empresas privadas, ou seja, convida-se quem achar que deve ser convidado.
O bolo de questões é grande e não são os debates o grande problema atual, embora esteja na hora de revisões em seus formatos. No mais, eles estão apenas escancarando que há muitas questões a se resolver: entender as demandas que surgem de lá e de cá, as insatisfações com o processo democrático, a má qualidade dos partidos e de elites políticas e seu descolamento da realidade social, as desigualdades e desesperanças que geram revoltas e pavimentam caminhos de salvadores da pátria etc. Tudo isso para dizer que não estamos a salvo apenas por este ou por aquele caminho, infelizmente. Quisera nós podermos resolver tudo com vetos em debates eleitorais.
* Rodrigo Vicente Silva é mestre e doutorando em Ciência Política (UFPR-PR). Cursou História (PUC-PR) e Jornalismo (Cásper Líbero). É editor-adjunto da Revista de Sociologia e Política. Está vinculado ao grupo de pesquisa Representação e Legitimidade Democrática (INCT-ReDem). Contribui semanalmente com esta coluna.