A mudança paradigmática do capitalismo selvagem para outro mais consciente é movimento desejado e bem vindo, como já falamos à exaustão por aqui. Tais novas práticas empresariais são caracterizadas por visão mais sustentável a longo prazo, busca por impacto relevante com as diversas partes interessadas e governança mais robusta, o que inclui a obsessão por uma conduta ética irrepreensível. Nesse ponto, ainda se vê alguma dissintonia entre discurso e prática. Explico com um recente exemplo.
Nessa semana, o jornal Folha de S. Paulo publicou a história de uma distribuidora de energia elétrica que deliberadamente fornece eletricidade a invasores ilegais de terras indígenas no Pará, mesmo após ter pedidos de autorização e licenciamento negados pela FUNAI e pelo IBAMA. Vale lembrar que atitudes como estas estimulam a invasão de garimpeiros, promovem o desmatamento ilegal e causam todo tipo de poluição ambiental oriunda do uso desordenado do solo, além de clara ameaça a tribos isoladas da região.
Curiosamente, a mesma empresa participa de ações de engajamento ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança) e, provavelmente, realiza procedimentos de due diligence (buscas reputacionais e verificação de antecedentes) sobre seus fornecedores. A ideia da due diligence de integridade (DDI) é exatamente filtrar parceiros de negócios que não compartilham os mesmos valores éticos, sobretudo pensando na associação de imagem e reputação organizacional, muito comum no meio corporativo.
Ora, por que não se realizam buscas reputacionais com o mesmo afinco em clientes potenciais? A resposta já se sabe: dói muito menos pesar a mão sobre um fornecedor do que negar faturamento vindo de um novo cliente. Entretanto, esse é um excelente termômetro de integridade empresarial: estamos verdadeiramente dispostos a perder dinheiro para sermos coerente com nossos princípios? Ética vale a pena mesmo quando perdemos um novo negócio?
Por isso venho alertando a necessidade de ranquear os valores de uma organização – no seu planejamento estratégico – antes da missão (razão de existir da organização) ou da visão (onde se busca chegar a longo prazo), reforçando a importância dos princípios norteadores na caminhada de uma empresa.
Este não é um exercício apenas teórico. É exatamente em situações como esta que descobrimos o que realmente move uma organização; se em algum momento a missão ou a visão colidirem com os valores, em qualquer situação, é preciso permanecer com os últimos. Caso contrário, a força motriz corporativa será apenas o velho e bom lucro sem propósito.
Daniel Lança é Head de ESG do Instituto Inhotim, sócio da SG Compliance e professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC). É Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e especialista em Gestão de Riscos pela Universidade Harvard.