Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e um dos investigadores mais experientes do país, acredita que o ex-presidente Lula ainda não fechou questão sobre tratamento que dará à lista tríplice da entidade na escolha de um eventual procurador-geral da República. Isso, caso vença a eleição.
Jair Bolsonaro, por outro lado, ignorou a lista nas duas vezes em que escolheu Augusto Aras, o que, segundo Cazetta, demonstra que o candidato à reeleição já deu sua palavra final sobre o tema.
Acuado pelo momento político em que a lista virou uma espécie de “Geni”, o procurador deu entrevista à coluna defendendo a “eleição interna” e enfatizando que ela dá transparência ao processo de escolha do PGR. Também, segundo o investigador, permite que a sociedade conheça os postulantes ao cargo.
Além disso, diz, a lista tríplice mostra um aval dos membros do MPF ao nome escolhido, afastando suspeitas de atuação enviesada, como as que são feitas ao atual procurador-geral da República.
Para Cazetta, no entanto, muitas das críticas feitas a Augusto Aras são improcedentes. Como exemplo, ele cita acusações criminais contra Bolsonaro que não foram levadas adiante pelo PGR. Diz mais: que algumas dessas imputações contra o presidente são frágeis.
Sobre a Lava Jato, Ubiratan Cazetta afirmou à coluna que houve uma “histeria” coletiva no auge da operação, e que a sociedade olhou para aqueles fatos com o olhar do “bandido x mocinho”. O procurador declarou que qualquer PGR escolhido após a Lava Jato seria mesmo mais comedido.
O presidente da ANPR ainda faz um importante desabafo, admitindo que 2022 pode sentenciar o fim das eleições no Ministério Público Federal: “é um momento crucial para a lista tríplice, pois se – na eventual mudança de governo – ela não for considerada…. a chance de incluí-la na Constituição ficará muito menor”.
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Coluna – Os três candidatos que estão liderando as pesquisas não se comprometeram com a lista tríplice para o cargo de procurador-geral da República. O Ciro Gomes não se comprometeu no Roda Viva, o Lula não se comprometeu no UOL e Jair Bolsonaro não se comprometeu em seu mandato, em sua vida. Como o senhor vê isso? Pode ser o fim da lista tríplice?
Ubiratan Cazzeta – Você tem razão. É um contexto complicado. Nós fizemos a lista há 2 anos, na recondução do Aras, entre outras coisas, para manter o assunto vivo. Tivemos um sucesso importante, que foi a participação de 70% da carreira. Mesmo sabendo que, na recondução do Aras, a lista não seria observada – já que na primeira não foi – nós tivemos uma presença bem significativa da carreira, demonstrando que há um sentimento no MPF em relação à validade, à legitimidade e à importância da lista. Esse portfólio não é um pedido da Associação, mas de, no mínimo, 70% da carreira, entre associados e não associados, demonstrando que a lista é importante. Esse é o primeiro ponto que eu destacaria.
Cada um desses candidatos tem uma motivação diferente. Visivelmente, Bolsonaro já demonstrou o que ele pensa da lista ao não indicar. Ciro é muito crítico – e acho até que no Roda Viva ele diminuiu as críticas ao que já tínhamos ouvido. Já sobre o ex-presidente Lula, acho que a resposta dele – especialmente no UOL – foi estratégica. Ele tinha dado uma resposta meses antes, acho que para a Rádio Gaúcha, em que ele tinha dito que seguiria a lista, mas não se comprometia com o primeiro nome da lista. No UOL, se você observar bem, ele inicia a resposta dizendo “olha, eu preciso ter algum segredo, alguma surpresa para o governo”. Por isso, acho que a resposta dele foi muito mais estratégica do que definitiva. Pelo menos é com o que estou trabalhando. Por que estratégica? Essa definição é uma definição para o segundo semestre do próximo mandato. O mandato do Aras vai até 26 de setembro. Então, a indicação deve ocorrer ali em agosto para dar prazo à sabatina. E antecipar esse tema que tradicionalmente não é de campanha me parece que é a forma como o presidente Lula sempre tratou desses assuntos. Como associação, tenho a expectativa de que o tema não esteja encerrado. Pelo menos dois dos candidatos – embora eu saiba a resistência a ela – e vou continuar com [diálogo]. Nós temos hoje dois modelos, um que é opaco, a escolha é feita a partir de candidatos não declarados, sem debate com a sociedade; e um outro modelo que a carreira se manifesta, a partir de pessoas que se apresentam expressamente e que trazem para o debate público. Nós estamos entrando na facilidade e transparência, nos critérios de escolha de um cargo que é essencial no regime democrático, que não é para ser nem inimigo, nem advogado do presidente, mas tem que ter autonomia. Daí a nossa defesa. Sem contar que dos 32 MPs no Brasil, o único que não tem lista somos nós. O MPU são quatro ramos, três tem lista. Os MPs estaduais são 26 e todos tem lista tríplice. Então, não vejo motivação histórica para que apenas o MPF não tenha a escolha do seu procurador-geral a partir de uma lista.
Coluna – O FHC manteve o Geraldo Brindeiro, ele teve o comportamento parecido com o do Aras, o lado negativo de não respeitar a lista. E o lado negativo de se respeitar a lista nós vimos que, de fato, na lava jato, houve problemas. Ficamos numa situação em que o MPF teve uma atuação muito política.
Ubiratan Cazzeta – Não me parece que as críticas são por conta da Lava Jato – e sim à gestão do Rodrigo Janot [hoje candidato a deputado] essencialmente – mas acho que são um pouco menores as da Raquel Dodge, que também foi escolhida por lista. Tradicionalmente, se fala que a lista é corporativa, só atende os interesses do MP. Se o argumento fosse verdadeiro, não estaríamos nessa discussão porque é uma lista corporativa e dificilmente um procurador corporativo teria tomado um viés político como se acusa ter sido tomado essencialmente na gestão do Janot. Então, acho que o diagnóstico do problema e vinculação dele à lista como origem é que está errado. Não é a lista que gerou as atuações do Janot. Esse é um primeiro ponto e eu te digo isso porque um procurador corporativo, ao contrário de buscar um confronto com o executivo, buscaria estar bem com o executivo porque é a melhor forma de garantir que os interesses da corporação sejam respeitados. O que houve na gestão do Janot, nesse conjunto da Lava jato, é um momento muito específico. Eu ia usar um termo que eu não gosto, eu ia usar histeria, não acho que seja histeria, mas aquele momento da Lava Jato a imprensa, boa parte da sociedade, olhou para aqueles fatos com o olhar do bandido x mocinho, que eu não gosto, isso simplifica a discussão, acho que deveríamos ter tido mais maturidade, todos, MP, cobertura que veio nesse contexto, e até a discussão da sociedade. Não podemos trabalhar aqui com chavões de listas do Janot, heróis x bandidos, nova política nascendo de um processo judicial. O erro está aí, não está no processo de escolha. O PT mesmo teve, na ocasião da escolha do Janot, outros dois nomes com perfil bastante diferente, que talvez tivesse resultado em outro desenho. Eu acho que se classifica um problema, que é se houve ou não houve abuso na Lava Jato, e se vincula esse problema à lista quando isso não me parece ter relação, porque eu tenho em todos os outros ministérios públicos esse processo e não se tem a repetição do processo idêntico nos outros MPs. E por que a lista? Ela dá ao presidente da República a proximidade de escolher três nomes que passaram por um crivo da instituição. Se você resgatar o discurso do Janot e dos outros candidatos quando concorreram à lista tríplice pela primeira vez e à recondução… a operação não era um tema, não era um pleito. ‘Olha esse cara tá emparedando a política’, os critérios eram outros, eram julgar histórias, histórias de membros com uma vivência de MP. Então, o diagnóstico está errado. Não é a lista que causa o problema na Lava Jato, o problema é o contexto histórico.
Coluna – E o contexto sem lista produziu o Augusto Aras? Você poderia fazer uma avaliação até agora sobre o mandato do atual procurador-geral da República?
Ubiratan Cazzeta – Eu tenho que ter muito cuidado com essa questão por vários fatores. Ele é um associado, e essa análise passa por muitos finos critérios. Acho que a minha principal crítica ao Aras é em relação ao processo de escolha e a forma como ele combateu a lista. O Aras sempre falou que a lista era um processo sindicalista, sempre olhando para essa lógica do corporativismo. Então, a principal crítica é essa. Sobre a atuação dele, acho que são estilos diferentes de MP. Acho sinceramente – de certa forma até pela discussão que estamos tendo aqui – era um momento no qual qualquer membro que assumisse a procuradoria-geral teria de ser mais contido. Não há dúvidas, seja por críticas procedentes ou improcedentes, de que há uma leitura de que houve um abuso por parte do MPF. Então, qualquer procurador que assumisse, assumiria com um processo de autocontenção maior. E daí entram os estilos, os estilos diferentes de lidar tanto com a comunicação, quanto com a Presidência e a forma como atua. A minha questão em relação ao Aras é bem essa: qualquer procurador-geral viria com menos ímpeto, menos ênfase nesse momento. Eu não tenho elementos para dizer se ele foi indolente, os arquivamentos estão aí e o próprio Supremo os aceitou. Temos de lembrar que esse momento está muito dentro de uma polarização e de exemplos ruins. Vou só citar um para não parecer que eu estou enrolando. Quando a CPI da Covid imputa ao Bolsonaro o artigo 267, que é da disseminação de doença contagiosa, nenhum procurador do Brasil de primeiro grau – até o geral – poderia fazer aquela imputação ao presidente. Por quê? Porque não dá para dizer que foi o presidente que fez a propagação de um germe. Você pode criticar a política dele de saúde, de combate, de negacionismo, isso tudo você pode criticar, mas dizer que ele foi responsável pela propagação da pandemia do ponto de vista criminal, é muito difícil. Então, uma parte das críticas postas ao Aras do ponto de vista criminal é tecnicamente muito frágil. Mas a PF diz que ele cometeu crime quando divulgou inquérito policial sigiloso.
Coluna – Mas teve alguma questão da CPI que merecia ser investigada?
Ubiratan Cazzeta – A gente pode separar as críticas políticas, administrativas que podem ser feitas ao Bolsonaro, mas no aspecto criminal a maior parte dos casos que foram colocados eram realmente frágeis, tanto que o próprio Supremo não recusou o arquivamento. O único arquivamento que eu me lembro de recusa, e que nem foi recusa, foi aquele caso que o Alexandre de Moraes arquivou o inquérito e abriu um novo, e agora há essa discussão dele direto com a Lindôra Araújo em que ela se posicionou pedindo o arquivamento. Ele disse que ainda não dava para fazer o arquivamento enquanto o inquérito tinha diligências em andamento. É difícil, numa análise técnica e crua, na parte criminal, os elementos contundentes contra o presidente da República são frágeis. E é para ser assim mesmo, se você for parar para olhar, essas coisas das acusações criminas contra o presidente é para serem raras – entre outras coisas, porque está numa posição em que ele dificilmente é o agente principal das políticas públicas. Mas normalmente ele está num andar lá de cima. Pode ocorrer por omissão, mas eu não criticaria por conta da questão da atuação criminal do PGR. O meu ponto é: a gente precisa fazer essa análise de forma mais técnica e, de fato, algumas imputações do ponto de vista criminal são fracas.
Coluna – Algumas?
Ubiratan Cazzeta – Poderia investigar melhor…
Coluna – Claramente o presidente da República teve um comportamento absurdo durante a pandemia, e ali não havia só essa discussão que você colocou, tinha outras coisas. O que eu percebo, e que todo o país tá percebendo, é que o atual procurador-geral é quase um braço do governo. Isso não é o papel de um procurador-geral. Ou é?
Ubiratan Cazzeta – Eu falei uma vez, vou falar isso outras vezes. Quando a gente tem, independentemente de eu concordar ou discordar dessa leitura, essa suspeição, quando você tem no procurador-geral da República uma leitura de maior ou menor parte da sociedade de que ele age de uma forma que não é independente, você tem um problema sério para o MP. O MPF precisa da independência não para proteger o seu mérito, a independência ela é importante para a instituição, mas ainda mais para a sociedade. E quanto a sociedade, uma parte maior ou menor, acha que isso não está sendo feita, nós temos um problema de modelo e aí é que eu volto ao ponto inicial: acho que a lista tríplice tem a vantagem da transparência a favor da independência. Então, se o Aras é ou não é independente, vamos poder analisar em cada caso concreto. Agora, a existência dessa pecha sobre ele já é suficiente para colocar a instituição numa posição muito fragilizada. Para isso, o antídoto que a gente vê – além de uma cobrança social, se o Senado acha que ele não está agindo, a Casa tem mecanismos para agir – a lista entra nesse conceito, porque se você dá transparência desde o início a quais são os critérios, e porque que a pessoa está querendo o cargo, aumenta essa dificuldade de alguém ser refém.
Coluna – Então, voltando à pergunta inicial, você concorda que a lista tríplice corre um certo risco como nunca correu desde 2003?
Ubiratan Cazzeta – É um momento crucial dela, pois se na eventual mudança de governo mais uma vez a lista não for considerada, como ela não é um texto expresso na Constituição, a chance de incluí-lo na Carta vai ficando cada vez menor. E se cria um hábito de que ela não é necessária. A tendência é de que ela vá se enfraquecendo cada vez mais.
Coluna – O que você vai tentar falar aos candidatos ainda para mudar essa visão? Seja para um lado ou para o outro, qual será seu foco como presidente da ANPR nessas conversas com os candidatos até a eleição?
Ubiratan Cazzeta – A questão é que estamos diante de dois modelos, um opaco, como disse, e o outro é o transparente. Ainda que o transparente possa te levar a uma escolha ruim, ainda assim certamente ele é melhor do que aquele modelo opaco que você não sabe quem vai estar sendo escolhido. Diante de dois modelos, o republicano nos dá mais transparência, tanto um quanto o outro, podem gerar um procurador-geral que seja alinhado, quanto podem gerar um procurador-geral que repita essa conduta que é objeto da crítica. Mal comparando, eu posso eleger um candidato pensando que ele é bom e ele se tornar um péssimo gestor, ainda assim é melhor eu correr o risco de votar mal do que ter um regime autocrático, onde a escolha é feita por um sistema ditatorial ou tirano. No momento da recondução do Janot, ele não precisaria ser reconduzido, poderia ser indicado um outro da lista, havia um mecanismo, a lista não é uma imposição, muito menos a imposição de que seja o mais votado, ela resguarda a presidência e o Senado, que vai sabatinar, fazer um filtro sobre o comportamento do procurador-geral no mandato de dois anos. Para completar o raciocínio: e essa não é uma posição da ANPR, mas pessoal, o melhor modelo que eu vejo previsto na Constituição é a indicação a partir de uma lista tríplice, mas sem direito a recondução, por um prazo de três anos. Esse é o modelo que parece ser mais seguro. Evita a discussão sobre praticar atos buscando a recondução e assegura a independência.
Coluna – É isso que vocês estão propondo agora?
Ubiratan Cazzeta – Essa é uma posição que eu não posso dizer que é da Associação, pois ela não foi debatida pela classe. Eu já defendi isso algumas vezes, mas nunca fizemos um congresso. Mas essa é uma posição que eu defendo, inclusive que o Claudio Fonteles defendeu em um artigo recentemente com mais rigor. A dele é o mandato de três anos, sem recondução e com uma vedação de ser indicado a qualquer outro cargo depois de ter sido procurador-geral da República.
Coluna – Partindo de tudo isso que você falou, fica claro que o PT respeitou o modelo que você defende, escolhendo o primeiro da lista – e eu sei que isso não era necessário, tanto que a Raquel Dodge fez um papel importante sendo a segunda e fazendo denúncias e colocando freios e contrapesos – mas fica claro que você está defendendo uma coisa que o PT respeitou e o Bolsonaro não respeitou…
Ubiratan Cazzeta – O contexto de hoje é esse de fato: de um partido que respeitou esse modelo e hoje a crítica, em face de um outro que não o respeitou e que expressamente não o cumpre. Isso não quer dizer que eu prefiro um partido ou outro, mas é o modelo que temos de arranjos políticos atuais, nessa polarização que a gente enfrenta.