O que o projeto antiaborto diz sobre o futuro do Brasil
Lei tem o apoio de segmentos políticos que crescem cada vez mais
![Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional destinada à deliberação dos vetos de nºs 46 de 2021; 30 e 65 de 2022; 9, 14 (dispositivos 1 a 3, 5 a 53, 55 a 58, 61 a 64, 66, 67, 109 a 114, 116, 119 a 315, 317, 319 a 390 e 393 a 397), 18, 26 (dispositivos 3 e 5 a 10), 36 (dispositivo 3), 39, 41, 45 (dispositivo 10), 46 (dispositivos 1 a 3, 6, 8 a 12 e 14), 47 (dispositivos 9 a 17) e 48 de 2023; e 1, 4 (dispositivo 64) e 8 de 2024; PLNs nos. 1, 2 e 5 a 11 de 2024; e eleição complementar do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. Em discurso, à tribuna, Mesa: presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG); secretário-geral da Mesa do Senado Federal, Gustavo A. Sabóia Vieira. Bancada: líder do governo no Senado Federal, líder do governo no Congresso Nacional, Em pronunciamento, à bancada, Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado](https://preprod.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/06/SENADO-PLACAR-SAIDINHA-PRESOS-2024-5-c.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
A tramitação acelerada do projeto de lei 1904/2024 na Câmara dos Deputados indica, infelizmente, que o falso moralismo em busca de votos dominará a discussão política nos próximos anos. Se virar lei, o projeto fará com que uma mulher estuprada que opte pelo aborto a partir da vigésima segunda semana de gestação fique presa por até 20 anos –10 anos a mais do que o estuprador.
O texto ignora a alta incidência de estupros contra crianças, cujo reconhecimento da gravidez é difícil e demorado, e a baixíssima disponibilidade de hospitais habilitados a fazer o aborto nesses casos, o que atrasa ainda mais o procedimento e obriga a vítima a fazê-lo após a vigésima segunda semana –momento em que a própria vítima será, de acordo com o projeto, equiparada a um homicida.
O projeto tem um aspecto puramente eleitoreiro, relacionado à disputa pela sucessão de Arthur Lira (PP-AL) na Presidência da Câmara dos Deputados. Ou seja: mais uma vez os interesses de pequenos grupos privilegiados se colocam à frente do interesse público nacional. Como resultado, o Brasil vai, aos poucos, voltando a viver em um passado remoto desprovido de liberdades individuais –sobretudo para grupos vulneráveis como mulheres e negros.
É assustador saber que políticos e partidos que defendem a intromissão de igrejas na vida particular do cidadão estejam em franca ascensão no Brasil. Esse projeto é uma sádica prévia do que pode estar por vir. A bancada evangélica no Congresso voltou à fase dos arroubos autoritários medievais.
O aborto é um problema e precisa ser discutido –sobretudo o aborto ilegal, que causa muitas mortes, todos os anos, principalmente de mulheres pobres. Mas essa é uma questão de saúde e não de religião ou de ideologia política. Não cabe ao Estado se meter em aspectos íntimos da vida do cidadão. Muito menos cabe a qualquer denominação religiosa, ainda que legitimamente constituída no Brasil, fazer essa intromissão.
Combater o aborto com honestidade envolve fazer campanhas educativas a respeito de sexo, suas consequências e riscos. É preciso também disseminar no Brasil a necessidade de proteger mulheres e meninas dos estupros e do assédio sexual. O que vemos, no entanto, é que nem os governos de esquerda nem os de direita têm compromisso com esse tipo de campanha. Com relação à gravidez decorrente de estupro, a lei já estipula o que a mulher pode ou não fazer –o problema são os numerosos obstáculos para o exercício desse direito, fazendo ultrapassar as 22 semanas.
Seja qual for o resultado da tramitação desse projeto, o certo é que as lideranças moralistas e os ricos continuarão tendo acesso ao aborto, no Brasil e no exterior. É o mesmo que ocorre com as drogas. A proibição e a cadeia, na prática, só valem para quem não tem dinheiro ou influência. Ou a depender da cor da pele.
Equiparar a mulher que opta pelo aborto a um assassino e impor a ela uma pena maior do que a do estuprador é uma das atitudes mais sádicas tomadas por agentes públicos no Brasil desde a redemocratização. Infelizmente, é só uma amostra do tipo de baixaria que os políticos atuais estão dispostos a fazer em troca de holofote e poder.