Li que quando os fundadores do cinema Estação se reuniram para criar o projeto, um dos primeiros nomes sugeridos foi Cineclube Mico-Leão-Dourado. A escolha acabou descartada, mas, passados mais de 35 anos, a decisão judicial que autorizou o despejo do Estação NET Rio, o mais tradicional cinema do grupo, faz pensar sobre a ironia do destino.
Assim como o Mico-Leão-Dourado, os cinemas de rua entraram em perigo de extinção há tempos, diante do boom de complexos enormes em shoppings, mas o tempo não os deixou a sós na mira. Nos últimos anos, o cinema como arte numa sala escura entrou na reta também para os grandes conglomerados, que começaram a sofrer com a competição crescente dos streamings. A pandemia do Covid veio como uma tempestade perfeita num terreno já alagado.
Neste cenário complicado, a disputa entre o grupo Estação e o grupo Severiano Ribeiro, apesar de ser comercial, tem um forte caráter simbólico. O cinema em risco de despejo é um dos poucos remanescentes nas ruas do Rio de Janeiro, um dos mais antigos, e também um dos que teve maior participação em eventos, lançamentos, festivais e apoios à exibição de filmes brasileiros nas últimas décadas. Não à toa, é cultuado e admirado pela maior parte das pessoas que fizeram, fazem e sonham em fazer cinema no Rio.
Fechar as cinco salas, num ponto em que ajudaram a criar um reduto cultural, é um ato no mínimo triste para a cidade. O Grupo Severiano Ribeiro não divulgou os planos, mas são do mesmo ramo, não são um fundo imobiliário ou algo do tipo. A história do grupo, que completou 100 anos em 2017, é recheada de marcos importantes para o cinema brasileiro e carioca. Desde a participação na fundação da Cinelândia, passando pela criação do sindicato dos exibidores, pelo controle da famosa Atlântida e pela abertura de dezenas de salas de cinema pelo Brasil, até o posto de maior grupo exibidor 100% brasileiro que ostentam. Essa trajetória é uma marca forte no país, um legado passado de pai para filho, de filho para neto, e a tendência é que assim continue.
O grupo pode ter muitas razões para impor a disputa comercial, mas talvez esteja faltando olhar com mais distanciamento e ver o símbolo do ato em si. A mancha que podem deixar na própria marca centenária.
Uma frase do cineasta Akira Kurosawa diz que “é o poder da memória que dá origem ao poder da imaginação”. A história por trás dessas salas e o impacto que o grupo Estação teve e tem no cinema nacional são importantes para a memória do cinema brasileiro, e isso se desdobra também na nossa construção de futuro.
É claro que o grupo Severiano Ribeiro também sofreu muito com o impacto da pandemia. Apenas a título de exemplo, um balanço financeiro publicado por uma das empresas controladas por eles, em 25 de junho deste ano, mostra que a situação não está fácil para ninguém. A subsidiária SR São Paulo Cinemas, que possui seis salas na capital paulista, passou de um lucro de R$ 2,852 milhões em 2019 para um prejuízo de R$ 1,084 milhão em 2020. Não encontrei outros dados financeiros do grupo publicados, mas é razoável acreditar que outras controladas tenham sofrido impacto parecido. O símbolo mais duro desse cenário foi o fechamento do próprio Roxy, um dos cinemas de rua mais antigos do Rio, inaugurado em 1938 pelo patriarca da família e fechado neste ano.
No caso do Estação NET Rio, o fechamento pode ser uma pá de cal não apenas nas salas em questão, mas também no próprio grupo Estação, como saiu na imprensa nos últimos dias.
O grupo Severiano Ribeiro não é o responsável pelo grupo Estação. Isso é óbvio. O Estado, a Ancine e diversos outros entes que fazem a cultura nacional têm um papel mais relevante a ser desempenhado nesse momento. O BNDES ajudou grandes parques exibidores. Por que não ajudar também os menores? Ainda assim, na ponta da lança quem espeta agora é o dono do imóvel, ou seja, o grupo Severiano Ribeiro, que pode ter um papel importante de apoio ao grupo Estação, um dos maiores incentivadores da produção independente nacional, no momento mais crítico do cinema brasileiro. Não é apenas uma crise econômica. É uma fase de transição, em que os alvos precisam se unir, mesmo que sua natureza seja de competição.
O cineasta russo Andrei Tarkovsky, em seu livro “Esculpir o Tempo”, diz que “a imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra, o menor no lugar do maior”. No auge da guerra que o cinema brasileiro trava em mil frentes diferentes, olhar para o menor e entender o símbolo dessa metonímia pode ser inclusive um cuidado de autopreservação a longo prazo.
No site do grupo Severiano Ribeiro, está escrito que os valores da empresa são “respeito, orgulho da marca, tradição com inovação, paixão pelo cinema, atitude empreendedora e perseverança”. Tudo que casa com a preservação e a valorização do grupo Estação num momento tão grave.
Voltando ao Mico-Leão-Dourado, quando o primatologista Adelmar F. Coimbra Filho deu os primeiros passos para o programa de salvamento do animal em risco de extinção, havia apenas 200 micos na natureza. Muito apoio foi angariado, de diversas partes, e décadas depois esse número chegou a 3.200. O trabalho é contínuo, mas com apoio há caminhos.
O buraco financeiro do Grupo Severiano Ribeiro talvez seja grave, mas contaram com apoio do BNDES, obtiveram uma linha de R$ 20 milhões no ano passado para manter a empresa durante os meses fechados, e provavelmente seguem batalhando para reaver os prejuízos da pandemia de todas as formas, mas a solução não está no fechamento do Estação. Pode parecer que o buraco será sanado, mas o impacto simbólico fica. A marca é maior do que a dívida. A cultura carioca e o cinema brasileiro, já tão maltratados, não merecem essa troca de socos dentro das próprias trincheiras.
As negociações são particulares, mas as entrevistas dadas pelos donos do grupo Estação mostram que estão fazendo um grande esforço. Sabe-se que o Estação já passou por outras grandes crises e conseguiu se reinventar. A volta do pós-pandemia abre espaço para mais um renascimento.
O Grupo Severiano Ribeiro tem condições de dar essa ajuda. Não parece ser um gesto de caridade, mas sim de visão sobre o próprio universo em que estão inseridos e que lutaram tanto para construir. Não vale a pena trocar essa pá de cal por uma mão estendida?
* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro