No país do futebol nem a Copa conseguiu (pre)ocupar tanto os brasileiros quanto a busca por garantir o Bolsa Família dentro das regras fiscais, o que se procura fazer com a PEC de Transição. O assunto é sério porque pode comprometer a viabilidade fiscal do país.
Essa questão já consome os brasileiros há algum tempo. No segundo semestre de 2021, o Governo Federal disse não ter como cumprir as regras orçamentárias e pagar as condenações judiciais, os precatórios. Essa afirmação nunca ficou comprovada, mas o fato é que o texto constitucional foi alterado na tentativa de permitir que as condenações contra a União sejam, até 2026, apenas parcialmente pagas, postergando um passivo explosivo, que se estima pode superar R$ 352 bi – mais do que o dobro do valor que a PEC de Transição autorizará a União a gastar sem observar a regra do teto de gastos –, a serem liquidados ao final do mandato do próximo governo. Essa manobra majorou os juros, alterou a taxa de câmbio, afugentou investidores da bolsa e agora pende de solução pelo Judiciário, apenas confirmando que segurança jurídica é uma âncora econômica. O Executivo que cumpre as ordens do Judiciário não só se distancia dos regimes totalitários, como transmite ao investidor a previsibilidade de que, se lesado, receberá o que lhe é devido.
Agora perde-se a oportunidade de desmontar essa bomba que foi introduzida com as ECs 113/21 e 114/21, porque o debate centra-se em conceder uma licença ao gasto – necessário, diga-se, com a assistência social –, esquecendo-se de que a solução pode estar nos precatórios. É que se houver o reconhecimento de que precatórios não se sujeitam à regra do teto de gastos, porque são despesa incontrolável e mandatória, o espaço que hoje ocupam estará liberado e poderá ser usado para os projetos que a sociedade demandar, tais como Bolsa Família.
À época, os maiores conhecedores do tema alertaram para necessidade de retirar essa despesa do teto de gastos, incluindo Amaury Bier, Pedro Parente, Maílson da Nóbrega, Carlos Kawall, Eduardo Guardia, Daniel Goldberg, Armínio Fraga, dentre outros. O próprio Tesouro Nacional agora propõe que “a totalidade das despesas com sentenças judiciais e precatórios deva ser excetuada do limite de despesa, simplificando o arcabouço atual, permitindo o pagamento tempestivo das obrigações assumidas pelo governo, e reduzindo as oscilações bruscas em relação ao espaço para as demais despesas sujeitas ao Teto”. Precatórios, repito, consomem esse espaço – que poderia ser destinado a despesas discricionárias – mesmo sendo uma despesa obrigatória e que, portanto, nunca deveria estar sob o manto de uma regra que visa frear o gasto público. O Erário não tem, nem poderia ter, controle sobre o montante das condenações judiciais que podem lhe vir a ser carreadas.
Vale lembrar que precatórios não se destinam apenas a reparar lesões acometidas pela União contra grupos econômicos, mas também a recompor o que o beneficiário da previdência social não recebeu, o reajuste devido aos servidores públicos (do SUS, das escolas públicas etc.), e a suprir variadas necessidades básicas que o direito qualifica como “alimentares”. Não é razoável assistir a uns e deixar outros – justamente aqueles que o Judiciário determinou sejam reparados – com “o pires na mão”, especialmente tendo em vista que reconhecer que precatórios não estão sujeitos à regra do teto de gastos é viabilizar, sem comprometer a regra fiscal vigente, a possibilidade de assistência a milhares de desvalidos.
O fim do ano se aproxima, o Legislativo pode e deve brindar a sociedade com a escolha soberana que se espera dos grandes parlamentos, aproveitando a oportunidade para resolver uma trapalhada inconstitucional que hoje impede o incremento da assistência social e gera forte insegurança jurídica: basta reconhecer que precatórios nunca deveriam ter sido sujeitos ao teto de gastos.
* Claudia Fonseca Morato Pavan é advogada, mestre em Direito Constitucional e professora do Insper