Não é de hoje que Mario Sergio Cortella é considerado o filósofo mais pop do Brasil. Com participações em programas de TV conhecidíssimos do público, Cortella já apareceu nas telinhas ao lado de Raul Gil, Faustão, Fátima Bernardes, Jô Soares e Danilo Gentili. Com um sotaque tipicamente sulista, em que as palavras saem da boca de forma cadenciada como se fossem canção entoada, Cortella conquistou não só o universo do showbiz, como também o mundo corporativo, que sempre o convida para proferir palestras sobre temas como liderança, gestão e resiliência.
Acoplada a sua grande capacidade de comunicação, Cortella tem uma excelente formação acadêmica, capaz gerar inveja a muitos dos seus pares. Estudou Filosofia aos pés dos jesuítas e pós-graduou-se em Educação pela PUC-SP, fazendo o seu doutoramento sob à orientação do grande educador brasileiro Paulo Freire, com quem conviveu por longos dezoito anos.
Continuando a série de entrevistas da coluna, que já contou com as participações de Caio Fábio, Ed René Kivitz, Antônio Carlos Costa, Luiz Felipe Pondé, Leandro Karnal, Lilia Schwarcz e outros, conversei com Mario Sergio Cortella. Nesta entrevista exclusiva, o filósofo nos falou sobre a sua relação com a religiosidade, emitiu opiniões sobre o movimento evangélico e compartilhou reminiscências do seu mentor Paulo Freire.
A seguir, a entrevista completa:
Rodolfo Capler – Como o senhor se define no quesito religião: teísta, deísta, ateu ou agnóstico?
Mario Sergio Cortella – Eu tenho formação na tradição católica. Inclusive, durante três anos vivi num convento da Ordem dos Carmelitas Descalços. Portanto, meu vínculo histórico e afetivo é com o mundo cristão católico. Boa parte da minha família, no que lhe concerne, é de tradição protestante (alguns dos meus parentes são pastores evangélicos). Apesar da minha história com o catolicismo eu não me identificaria como católico, pois, poderia soar ofensivo. Afinal, parte-se do princípio de que uma pessoa que confessa uma religião deve manter uma prática de fé autentica e algum vínculo institucional. Como não frequento os sacramentos do mundo católico, não posso me definir como católico, no sentido de ser um praticante cotidiano desta fé. Entretanto, tenho a tradição católica como uma inspiração de vida. Por exemplo, fui professor universitário por 35 anos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o que é emblemático dessa relação histórica que tenho com o catolicismo. Embora não me considere católico, não sou alguém que se coloca no campo do ateísmo. Utilizo sempre a máxima clássica do grande G.K. Chesterton: “Se não houvesse Deus, não haveria ateus”. A meu ver, essa ideia marca o território da temática da religião e da religiosidade. Não necessariamente, a religiosidade se transforma em religião. Portanto, pergunto: será que eu sou uma pessoa religiosa? Já o fui. Hoje não seria adequado dizer que o sou. Contudo, sou uma pessoa marcada pela religiosidade e assim desejo continuar.
Rodolfo Capler – Como o senhor enxerga a atual relação entre religião evangélica e política no Brasil?
Mario Sergio Cortella – Penso que é importante fazermos uma distinção entre os grupos neopentecostais — hegemônicos no segmento evangélico — e os grupos históricos reformados. O modus operandi desses grupos são diferentes. Dito isto, faz-se necessário lembrar que no Brasil sempre tivemos algum tipo de presença da fé cristã reformada. A partir do século XX, mais precisamente na década de 1970, expressões evangélicas pentecostalizadas passaram a figurar de forma mais significativa no país. Isso se deu, não em razão das outras religiões terem perdido energia, mas como resultado direto do processo de urbanização acelerada que ocorreu nos últimos cinquenta anos. Ou seja, as pessoas que viviam nas áreas rurais migraram para os grandes centros urbanos. A configuração social brasileira mudou e isso refletiu transformações no tecido social. Um exemplo é a música caipira que se tornou gênero sertanejo comercializável, com suas duplas universitárias. Conquanto tenha havido mudanças na música, no cinema, nas artes e no mundo religioso, as pessoas que passaram a viver nas regiões urbanizadas ainda mantinham hábitos, comportamentos e formas de pensar tipicamente rurais. O catolicismo que até os anos 1970 operava preeminentemente por meio da chamada teologia europeia foi deixando à margem —pouco a pouco — alguns valores e princípios que sempre foram caros ao povo do campo, tais como a compreensão da salvação individual, o entendimento da presença do mal encarnado numa personificação demoníaca e a crença sólida na exclusividade da Igreja Católica como instrumentalizadora da salvação. Ou seja, uma percepção ecumênica e fortemente social passou a influenciar a Igreja e as pessoas que migraram do campo para as grandes cidades, perderam a conexão com a fé católica. Por outro lado, as igrejas evangélicas retomaram algumas perspectivas cristãs antigas e arcaicas e passaram a oferecer isso ao povo. Nesse processo os evangélicos foram responsáveis pela ressurreição de três percepções arcaicas abandonadas pela Igreja Católica, a saber, o salvacionismo individual, a personificação do mal e a prosperidade como autenticadora da conexão com Deus (apesar desta ser uma perspectiva historicamente atribuída ao calvinista). A tudo isso se juntou ainda a prática do Cristianismo sem o Novo Testamento. Isto é, uma vivência cristã que é levada a cabo com a evocação do Antigo Testamento como referência de comunicação, de vestimenta e de comportamento. Esse evangelicalismo hegemônico — que não leva em conta o ensino de Jesus — se encontra entrelaçado com a política e leva para o campo da atuação pública essas perspectivas arcaicas. Isso é negativo, pois, colide com alguns valores democráticos.
Rodolfo Capler – Por que os pobres brasileiros estão abraçando a Teologia da Prosperida (que opera por meio de uma lógica meritocrática), em vez da Teologia da Libertação (que se preocupa com a partilha de terras e com os direitos dos oprimidos)?
Mario Sergio Cortella – Há duas fontes de interpretação do fenômeno. A primeira leva em conta que o mundo católico (ou reformado) tradicional quando se apresenta à periferia, o faz de modo muito centralizador, isto é, de forma hierárquica. Em contrapartida, as igrejas evangélicas são mais flexíveis, oferecendo a possibilidade de uma pessoa abrir uma igreja e fundar a sua própria denominação. Em outras palavras, com a ascensão dos evangélicos o mercado religioso ficou muito mais aberto e distante do monopólio das instituições religiosas mais antigas no Cristianismo. A segunda fonte de interpretação parte do entendimento que, desde os anos 1970, o Cristianismo mais antigo vem trabalhando com a noção de templos exuberantes, com medidas espaciais expressivas. O mundo evangélico pentecostal, em contrapartida, começou recusando isso, fazendo do cinema, do teatro e do espaço construído com tijolos, seus locais de reuniões. Isso resultou numa grande acessibilidade dos templos evangélicos às pessoas mais pobres, gerando crescimento numérico, com os evangélicos representando hoje 31% da população brasileira. Se o lema do ponto de partida dos evangélicos no Brasil era: “Somos poucos, mas somos bons”, hoje (meio século depois dos primeiros passos do boom evangélico) a máxima utilizada por eles é: “Somos muitos e por isso somos bons”. A melhor maneira encontrada pelo movimento evangélico de demonstrar isso foi por meio da espetacularização do encontro e da ostentação dos templos, que caracterizam os grupos neopentecostais. Por essa razão o movimento evangélico ganhou capilaridade entre as populações mais pobres. Ao trabalhar com a perspectiva da promessa de benesses materiais e por dar importância às pessoas das classes sociais mais baixas, a Teologia da Prosperidade alcançou sucesso entre elas. Já a Teologia da Libertação — que precisa fazer um esforço na ação coletiva — se apresenta com uma ênfase mais sociológica do que afetiva, por isso, talvez, não encontrou tanta atenção por parte das pessoas que vivem nas periferias brasileiras.
Rodolfo Capler – O crescimento vertiginoso dos evangélico está fazendo do Brasil um país mais tolerante ou menos tolerante?
Mario Sergio Cortella – Quando práticas religiosas precisam disputar espaço no mercado religioso haverá competitividade. Uma das características da competitividade é a depreciação das forças concorrentes. Isso ocorre no Cristianismo, sobretudo no campo do chamado neopentecostalismo. Embora os grupos protestantes históricos (luteranos, congregacionais, presbiterianos, batistas e metodistas), tenham tido algumas dissidências pontuais, prosseguiram em sua trajetória histórica mantendo uma certa coesão. Os grupos neopentecostais, por outro lado, promovem muitas cisões e fundam novas práticas religiosas. Naturalmente, isso gera um nível mais forte de intolerância. Seria muito bom se todas as religiões seguissem o princípio do ecumenismo, com todos convivendo sob o mesmo teto, entretanto, não é isso o que acontece. O que ocorre, ao contrário, é um processo de exclusão (imposto pelo Cristianismo) a todas as confissões de fé não cristãs, que no imaginário cristão são interpretadas como inimigas do próprio Cristianismo. Historicamente, o Cristianismo sempre rechaçou os adeptos de outras religiões monoteístas, os classificando como infiéis. No período medieval, a visão que se tinha do infiel era de que ele — ao contrário do pagão, que desconhecia a fé cristã e que, portanto, poderia ser catequizado — precisava ser colocado à margem e até destruído de alguma forma. O mundo católico que outrora fora intolerante com as religiões de matriz africana no Brasil, paulatinamente, mudou de perspectiva e se tornou mais tolerante. Os grupos neopentecostais tendem à intolerância justamente por manterem em seu imaginário religioso essa visão maniqueísta que separa fiéis de infiéis.
Rodolfo Capler – Como o senhor explica o atual ciclo global de nacionalismo, protecionismo, autoritarismo, fake news e xenofobia?
Mario Sergio Cortella – Todos esses movimentos passam pela antiga integração econômica, que atualmente se tornou interdependência. Ou seja, hoje temos uma interdependência global. Pela primeira vez, desde o início das primeiras navegações do século XV, experimentamos um desequilíbrio mundial das condições econômicas mais fortes, isto é, a possibilidade de se vencer a pobreza (fosse por uma economia de subsistência, pela mineração ou por meio do plantio em larga escala), se dissipou. Com a presença de grandes estruturas fabris, com novos modos de produção e novas formas tecnológicas, aumentaram as massas desempregadas e desconectadas de seu centro de origem. Hoje há no mundo muito mais retirantes do que houve, por exemplo, logo após a Segunda Guerra Mundial. Essas pessoas estão fora de suas terras natais, por causa das guerras ou em razão de não terem condições econômicas mínimas para sobreviverem. Elas estão circulando por um planeta que é integrado pelas comunicações digitais e pelos transportes. Tudo isso ocasiona uma disputa pelos meios de convivência, que antes eram muito mais longínquos. Se antigamente recebíamos notícias sobre a África, Índia, Paquistão ou sobre algumas localidades da Europa oriental como se essas regiões fossem lugares inacessíveis ou até míticos, hoje não mais acontece isso. Essa interdependência que o mundo experimenta faz com que, por exemplo, o gás que vem da Ucrânia faça falta na França. Dentro disso temos um fenômeno que exacerba a xenofobia, qual seja, o fato de que aquele que de vem fora está vindo não como escravizado ou como objeto de conquista – como ocorria há centenas de anos – mas como alguém que vem para viver como eu vivo. Outro fator importante para entendermos as mudanças que o mundo vem enfrentando é a recusa do combustível fóssil como poluidor ambiental. Imensas massas populacionais que vivem no Oriente Médio têm como subsídios de sobrevivência o dinheiro ganho a partir do combustível fóssil. Isto é, o Estado concentra esse recurso e faz políticas de distribuição básica, porém, não há a implementação e/ou construção de comércios mais amplos naquela região. Por causa da recusa do combustível fóssil, essas massas populacionais estão ficando sem meios de subsistência. A dificuldade econômica na vida das pessoas causa conflitos nas regiões afetadas, assim como motiva o deslocamento de muitos contingentes que se encontram perto da Europa. Todos esses processos levam a cabo a seguinte ideia: “Aquele que está do outro lado do rio é meu rival”.
Rodolfo Capler – É possível convivermos pacificamente em meio a polarização política que permeia o Brasil?
Mario Sergio Cortella – É necessário fazê-lo. Se é necessário, então nós somos capazes de fazê-lo. A nossa convivência conflitiva não é algo que caiu do céu; é fruto da elaboração humana. Se os conflitos entre nós fossem causados por forças externas demoníacas ou pelos deuses no Olimpo, não haveria possibilidade de vivermos de outra forma. Se a vida fosse tragédia no sentido clássico, nós estaríamos sem alternativa. Entretanto, como a vida não é tragédia grega, há possibilidades de vivermos de forma pacífica, pois, temos potencial de fazermos boas escolhas. É importante que se diga que isso não é algo que se faça somente com força de vontade. São necessários conhecimento, generosidade e mais humanidade.
Rodolfo Capler – O senhor também é um educador, cujo pensamento educacional pode ser definido como freireano. Paulo Freire além de seu mentor intelectual foi seu amigo e orientador. Qual é a importância dele para educação brasileira?
Mario Sergio Cortella – Paulo Freire é um filósofo contemporâneo da educação, que eu classifico no mesmo grau de importância de Jean Piaget, John Dewey, Vygotsky e Anísio Teixeira. O seu pensamento educacional influencia o mundo todo. Durante os anos 1950 e início dos anos 60, ele foi importante na vida pratica do Brasil ao estruturar um método de alfabetização de jovens e adultos no Nordeste, a partir dos trabalhos do SENAI. Foram pouquíssimas vezes em que ele teve oportunidade de implementar suas ideias nas estruturas institucionais de educação do país, exceto no início dos anos 1990, quando foi secretario de educação da cidade de São Paulo. A filosofia da educação de Paulo Freire tem um alcance muito forte em várias regiões do planeta, porém, ele não é imune ao debate e a observação discordante. Eu convivi com Paulo Freire durante dezoito anos, inclusive, fui o último orientando de doutorado da vida dele. O que pude observar nesses anos de convivência com Paulo Freire é que ele jamais impediria alguém de criticá-lo. Ele nunca seria contra uma pessoa que se opusesse a ele. Não é atoa que o elemento central de sua obra é a percepção do diálogo. É necessário ressaltar que diálogo na filosofia freireana não é concordância obrigatória ou consenso compulsório. Diálogo é a possibilidade de se admitir que o pensamento divergente não é necessariamente equivocado. Por essa e por outras razões, Paulo Freire tem uma grande importância no Brasil. Embora algumas pessoas atribua a ele a responsabilidade das mazelas sociais que emergem da educação pública, Freire não exerceu nenhum comando institucional na área da educação em nosso país. Ele apenas estruturou um método de alfabetização que teve sucesso em todos os contextos nos quais foi aplicado.
Rodolfo Capler – Por que Paulo Freire é malquisto pelos evangélicos?
Mario Sergio Cortella – Muita gente desconhece algumas informações sobre a biografia e sobre a formação de Paulo Freire. Ele teve um pai oficial do Exército e uma mãe muito cristã. Certa vez eu tive a oportunidade de entrevistá-lo para uma revista e pude perguntar a ele sobre o modo como ele lidava com a religião. Paulo Freire sempre foi muito afável no que diz respeito às questões religiosas. Portanto, essa visão demonizadora que alguns setores do movimento evangélico têm sobre ele, nem sempre carrega, em si, honestidade intelectual. A maior desonestidade vem por parte das pessoas que conhecem o seu pensamento e, mesmo assim, fazem críticas infundadas a ele. O que me chama a atenção é que boa parte do pensamento freireano circula no mundo não católico. A presença maior do pensamento de Paulo Freire se dá nos países nórdicos, numa parte da Europa que não tem o catolicismo como sua referência e em algumas regiões do mundo da África, onde o Cristianismo não tem predominância. Isso é muito emblemático no que diz respeito a relação dos cristãos com Paulo Freire.
Rodolfo Capler – Como o sistema educacional brasileiro deve ser reformado para preparar os jovens para um futuro desconhecido?
Mario Sergio Cortella – É importante relembrarmos que educação pública escolar não deve ser um projeto de governo, mas um projeto de nação. Houve uma aproximação desse projeto de nação no Brasil, com a elaboração de um plano nacional de educação (após dez anos de debates). Esse plano teria de ter um comprometimento formal por parte dos políticos eleitos em relação a sua execução. Ao contrário disso, o que vemos no Brasil é a educação sendo tratada como uma agenda de governo. Se olharmos para as nações que deram passos significativos em direção à boa educação pública, perceberemos que tais nações implementaram projetos nacionais de educação. Outro ponto que creio ser de vital importância para a nossa reforma educacional é fazermos a descentralização dos recursos destinados à educação e a descentralização das decisões. Ou seja, os sistemas municipais e estaduais precisam de mais autonomia na gestão educacional. Por último, eu mencionaria a vigência dos conselhos municipais de educação como essenciais para que a nossa educação tenha um bom rumo.
Rodolfo Capler – Qual mensagem o senhor gostaria de deixar para os eleitores brasileiros?
Mario Sergio Cortella – Se você não quiser lixo na sua cidade, no seu estado e em seu país, não coloque lixo na urna eletrônica. Se você colocar lixo na urna eletrônica por intermédio do seu voto é lixo que você terá. Pense bem no voto que você depositará na urna eletrônica, pois, o seu voto sempre trará algum tipo de retorno para a sua vida.
* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP