Nascido na favela da Coreia em São Gonçalo-RJ, o cantor gospel Kleber Lucas ascendeu socialmente devido ao impacto da igreja evangélica em sua vida. Autor de uma ampla discografia, que inclui os clássicos “Meu maior prazer” (1998), “Deus cuida de mim” (1999) e “Aos pés da Cruz” (2001), Kleber é vencedor do tão almejado “Grammy latino”, na categoria Melhor Álbum de Música Cristã em Língua Portuguesa com a canção “Profeta da esperança” (2013).
Além dos shows que faz por todo o país e das composições e participações musicais com as quais se ocupa, o artista pastoreia a Igreja Batista Soul no Recreio dos Bandeirantes na capital fluminense e faz doutorado em História Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A experiência acadêmica numa das maiores universidades brasileiras, deu a Kleber a capacidade de fazer uma leitura da sociedade que vai além das quatro paredes da religião institucional. “Essa experiência da universidade me colocou em contato com outros vieses de interpretação da realidade, da teologia e da própria Bíblia”, disse, num dos trechos da entrevista. E foi essa sua competência de enxergar a realidade por outros ângulos, afora o da religião, que o colocou em contato com o grande gênio da MPB, Caetano Veloso. Recentemente, ambos regravaram juntos a canção “Deus cuida de mim”, que está fazendo um estrondoso sucesso por todo o país. “Eu e o Caetano nos aproximamos durante a campanha do presidente Lula. Nos aconchegamos de forma muito leve. Certo dia estávamos na casa dele, quando peguei o violão durante uma madrugada e comecei a tocar ‘Deus cuida de mim’. Ele ficou curioso e começou a aprender a tocá-la e a cantá-la. Foi algo muito lindo”, revelou.
Kleber Lucas é 20º e último entrevistado da série de entrevistas que iniciamos na coluna no mês de julho. De lá para cá, conversei com um grupo seleto de pastores, filósofos, pensadores e políticos cuja atuação pública é de extrema importância para a formulação da opinião pública. Fazendo perguntas aos entrevistados sobre os mais variados temas – com ênfase especial na intersecção entre política e religião evangélica – o meu desígnio é o de fornecer aos leitores um panorama de interpretação do Brasil contemporâneo.
Leia a seguir a entrevista completa:
Rodolfo Capler – Como você se define teologicamente?
Kleber Lucas – Eu tenho uma longa história que começa no movimento neopentecostal. Em meados da década de 1980, fui muito próximo do bispo Robert McAlister da Igreja Nova Viva no Rio de Janeiro. Depois eu migrei para Goiânia e participei do início das chamadas comunidades evangélicas, que foram grandes movimentos, de onde saíram as igrejas Sara a Nossa Terra e Fonte da Vida. Ao fim de 15 anos dentro dos ambientes neopentecostais eu me transferi para a igreja Batista do Recreio no Rio de Janeiro. Sendo assim, a minha história se assemelha a de muita gente que começa sua trajetória cristã no movimento neopentecostal e depois, quando passa a se interessar mais pelo conhecimento bíblico e pela teologia, vai para as igrejas históricas. A minha formação teológica vem da Faculdade Teológica Sul Americana, a qual é supercalvinista. Então a minha teologia integra as experiências carismáticas do neopentecostalismo e a solidez bíblico-teológica das igrejas históricas. Eu a definiria como uma teologia contemporânea.
Rodolfo Capler – Há alguns anos você vem manifestando posicionamentos políticos e teológicos que se contrapõe aos interesses da agenda evangélica. Levando isso em conta, como é o seu relacionamento com o mundo evangélico hoje?
Kleber Lucas – Eu me tornei uma figura muito conhecida no universo evangélico, como cantor contratado por uma gravadora que atua dentro desse universo do evangelicalismo brasileiro. O meu reconhecimento se deu em meio a esse pluralismo de visões, pois, eu dialogo com igrejas pentecostais, neopentecostais e igrejas históricas. Acredito que o êxito da minha carreira vem da coerência teológica das letras das canções que componho e interpreto. A partir do advento das redes sociais eu passei a me manifestar publicamente sobre outros temas. Antes disso, as pessoas achavam que estavam identificadas com a minha visão teológica porque ouviam as minhas músicas e diziam “a música dele é muito boa”, ou “ele é de Deus, pois canta a Bíblia”. Quando elas passaram a ouvir minhas provocações, fruto de reflexão – eu cresci lendo e ouvindo Caio Fábio, Robinson Cavalcanti, John Stott, Francis Schaeffer, Ricardo Gondim, Ariovaldo Ramos e Ed René Kivitz – elas se assustaram. Para além da teologia eu fiz outros trajetos de reflexão. Estudando História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), eu tive contato com o André Leonardo Chevitarese (que me orientou no mestrado e me orienta agora no doutorado em História Comparada pela mesma instituição) e com outros autores como o Flávio Gomes, Eugênio Genovese, Frantz Fanon e Grada Kilomba. Essa experiência da universidade me colocou em contato com outros vieses de interpretação da realidade, da teologia e da própria Bíblia. Tudo isso não é considerado quando me expresso mais livremente nas redes sociais, por isso, naturalmente, gera um estranhamento nas pessoas, que na maioria das vezes não compreende muito bem o teor do que estou comunicando.
Rodolfo Capler – Como você analisa o envolvimento dos evangélicos com as estruturas de poder da sociedade?
Kleber Lucas – Eu gosto quando a professora Lilia Schwarcz diz que “o nosso presente está cheio de passados”. Eu aplico esta percepção no contexto do evangelicalismo no Brasil. A relação do segmento evangélico com a política eleitoral nunca foi diferente do que é em nossos dias. O que se tem hoje é mais evidência. Por exemplo, se analisarmos a história dos batistas no Brasil, veremos que os primeiros grupos que chegaram ao Brasil – por volta de 1866, na região de Santa Barbara d’Oeste, no interior de São Paulo -, vieram derrotados da Guerra de Secessão dos Estados Unidos. Eles não só traziam a mensagem da evangelização, como também as suas ideias. É importante salientar que esses primeiros grupos batistas tiveram liberdade e subsídios para edificarem suas comunidades e seus templos em solo brasileiro, devido aos esforços do general A.T. Hawthorne, que intercedeu junto às autoridades estadunidenses e brasileiras. O Brasil, naquele período histórico, era um país católico, entretanto, eles conseguiram espaço para prosseguirem com sua missão evangelizadora. Ou seja, eles chegaram aqui com uma trama política, por trás, visando reproduzirem um modelo político em nosso país. Lá nos Estados Unidos, esses grupos tinham escravos. Após saírem derrotados da guerra civil estadunidense, eles tentaram reproduzir esse modelo escravagista no Brasil. Durante dez anos, de 1871 a 1881, eles ficaram por aqui, só falando entre si e pregando em inglês, todavia, eles contavam com o respaldo da coroa portuguesa, que permitia a atuação deles. Toda essa história nos mostra que não tem como olharmos para o presente e não vermos resquícios do passado. O próprio Aurélio Buarque de Holanda diz que a República é fruto dos maçons e dos protestantes. Ou seja, a relação dos evangélicos com a política é muito antiga. Sempre houve um projeto de poder por parte dos evangélicos.
Rodolfo Capler – Quais são os saldos negativos do apoio majoritário das lideranças evangélicas ao bolsonarismo?
Kleber Lucas – Eu acredito que essa coisa metafísica, escatológica e messiânica do “Brasil acima de tudo e do Deus acima de todos” fez um estrago muito grande nas igrejas e na sociedade como um todo. Quando se apela para esse tipo de coisa, o evangelho de Jesus é maculado. A mensagem de Jesus de Nazaré é a mensagem do Reino de Deus, o qual é um reino de serviço, de “lava pés” e de justiça. Não tem nada a ver com pessoas de fuzil nas mãos. Nos últimos quatro anos, vimos inúmeros pastores posando para fotos fazendo o sinal de arminha com os dedos. Quando isso acontece o debate declina para um nível degradante, apartado do Estado Democrático de Direito. A coisa se torna uma espécie de jihad gospel. Além disso, entendo que o silêncio de boa parte das lideranças evangélicas ante os incontáveis desatinos e negligências do Bolsonaro é um silêncio político. Como puderam apoiar um candidato que foi contrário à vacina, favorável ao armamento da população e negacionista em relação à existência do racismo estrutural? A meu ver, o problema não é apenas o dano que isso causa para a sociedade, o qual é inegável. Os maiores problemas são os efeitos destrutivos disso para o lado de dentro da igreja. O presidente Bolsonaro encampou o discurso do “bem contra o mal”, se colocando no lugar do bem e identificando Lula e a esquerda como o mal. Ele disse, antes do segundo turno das eleições, que o Deus verdadeiro venceria. Os pastores bolsonaristas o apoiaram nisso e replicaram esse discurso. O que aconteceu? Ele perdeu democraticamente nas urnas e uma multidão ficou em profunda crise de fé, questionando o caráter de Deus. “Que Deus é esse que perde para o diabo?”, muitos ainda estão questionando, pois, aprenderam de seus líderes que o Deus verdadeiro é o deus da direita bolsonarista.
Rodolfo Capler – Ao lado de Leonardo Gonçalves, Clóvis Pinho, Tiago Arrais e de outros artistas cristãos, você lançou a canção “Messias” no último mês. A música que faz alusão às lideranças evangélicas bolsonaristas diz nos seus versos iniciais que “a religião que Deus pai aceita é aquela que cuida do órfão, do gay, do preto e da mulher”. Você acredita que esta música gerou algum tipo de consciência social e política entre os evangélicos?
Kleber Lucas – Essa música é um profetismo de denúncia, que consola e conforta as pessoas que estão em profunda crise em relação à igreja por saberem que ela levantou uma bandeira política de extrema-direita. É um profetismo que exorta a igreja a voltar à sua verdadeira vocação, que é cuidar das minorias sociais e amparar sofredores deste mundo. Não podemos nos esquecer que a igreja evangélica é responsável pela ressocialização de grande parte da população carcerária do Brasil. Ela sempre acolheu os menos favorecidos, portanto, ela não pode hoje retroceder e se extraviar de sua missão devido aum governo que se propôs a levantar a bandeira do ódio e das armas. “Messias” é uma resposta a cegueira que dominou uma parcela significativa da igreja evangélica brasileira. Muita gente odiou a canção, porém muitas outras a acolheram bem e se sentiram consoladas por sua letra.
Rodolfo Capler – Recentemente você aceitou o convite para integrar a equipe de transição do governo Lula na área da cultura. Quais serão suas proposições para melhorar a cultura em nosso país?
Kleber Lucas – Eu sou fruto da cultura cristã brasileira. Eu aprendi música, composição, vocal e instrumentos dentro da igreja. Eu costumo dizer que nasci no ventre da igreja evangélica no Brasil. Ou seja, eu sei qual é o potencial de cultura que viceja na igreja. Não estarei na equipe de transição do governo para representar os evangélicos, mas para levar a experiência desse movimento periférico de cultura.
Rodolfo Capler – Você pretende concorrer a algum cargo público, futuramente?
Kleber Lucas – Esta é a pergunta que mais eu tenho ouvido nos últimos tempos (risos). Isso parece algo incerto, mas eu tenho o desejo de contribuir, de diversas maneiras, com o progresso do meu país.
Rodolfo Capler – Sendo um homem negro, de origem pobre, o que a volta do presidente Lula à presidência da República significa para você?
Kleber Lucas – Esperança e possibilidade de sonhar. Eu olho para a favela onde eu nasci e vejo como ela era antes de Lula ascender ao poder. Com os governos Lula houve uma melhora significativa na vida das pessoas, que passaram a estudar e a se formar nas universidades. As contribuições sociais de Lula, deram mais dignidade às vidas das pessoas de periferia. Lula é esperança!
Rodolfo Capler – No último dia 4/12 você regravou o single “Deus cuida de mim” com a participação de Caetano Veloso, que publicamente já se declarou ateu. Para muitos evangélicos, a participação de um artista considerado ateu numa canção que não só afirma a existência, mas também a providência de Deus, seria algo contraditório. Como você responde a esta objeção?
Kleber Lucas – Eu acho que o próprio Caetano pode responder isso. Mas, baseando-me no que ele tem falado em suas últimas entrevistas, ele atribui a Deus a motivação para participar deste projeto. Há pouco ele disse a um jornalista que o indagara sobre o motivo que o levou a gravar “Deus cuida de mim”, que foi “Deus que nos uniu nesse projeto”. O Caetano, anteriormente, se declarou ateu, mas mudou sua posição. Quanto a mim, muita gente me pergunta sobre a razão que me levou a convidá-lo para gravar “Deus cuida de mim”. Eu sempre as respondo com uma questão: por que não fazê-lo? Eu e o Caetano nos aproximamos durante a campanha do presidente Lula. Nos aconchegamos de forma muito leve. Certo dia estávamos na cada dele, quando peguei o violão durante uma madrugada e comecei a tocar “Deus cuida de mim”. Ele ficou curioso e começou a aprender a tocá-la e a cantá-la. Foi algo muito lindo. Ali nasceu a ideia de cantarmos juntos a canção. De lá para cá temos nos emocionado muito e temos visto o resultado dessa parceria por Brasil todo.
Rodolfo Capler – Qual é a sua avaliação sobre a qualidade da música gospel no Brasil?
Kleber Lucas – A música gospel cresceu muito no Brasil. É uma realidade que integra excelentes cantores, compositores e músicos. A qualidade dos artistas do mundo gospel é muito elevada. Atualmente, muitos músicos do mundo gospel também tocam com artistas de outros segmentos musicais. Não há mais aquela separação entre sagrado e profano. O cara toca no domingo na igreja, depois grava com a Ludmilla, com o Thiaguinho e com outros artistas, por exemplo. Isso é algo ótimo, pois, antigamente, essa proibição artística era fator de exclusão de muitos bons músicos das igrejas.
Rodolfo Capler – Após um período eleitoral tão conturbado, qual mensagem você gostaria de deixar aos brasileiros?
Kleber Lucas – Deixo a mesma mensagem do presidente Lula, quando ele fez o seu discurso na noite da vitória. Ele conclamou todos à união pelo futuro do Brasil. Esta é a minha mensagem: vamos nos unir e dar um basta nesse estado de divisão social, que só faz mal ao nosso país.
* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP