Desprezadas durante os governos militares, as ferrovias brasileiras ainda continuam problemáticas mesmo após a redemocratização do país. Dos 363 projetos previstos pelo programa de aceleração do crescimento (PAC) para a infraestrutura de transportes, 33 (9%) são para o setor ferroviário. Já as rodovias estão em 73% das ações do PAC, com 267 projetos. Mas neste emaranhado de números, um dado chama atenção não pela presença e, sim, pela ausência: cadê os trens de passageiros do Brasil?
Na verdade, tem um. Um projeto de trem de passageiros entre Campinas e São Paulo foi acrescentado ao PAC. Se acontecer, fará parte de uma lista de apenas duas linhas de passageiros ferroviárias existentes no Brasil, ambas operadas pela Vale: a Vitória–Minas, com 664 km, e Carajás, com 870 km.
Este retrato do setor ferroviário foi feito pelo doutor em economia José Tavares de Araujo Jr., que integrou o primeiro governo Lula, entre 2003 e 2004, quando foi secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda. Tavares fez um mergulho neste tema e traçou aspectos do setor ferroviário de passageiros, em diversos países do mundo, demonstrando o atraso de mais de meio século do Brasil neste segmento. A pedido da entidade Ferrofrente, o economista tinha a missão de mapear e analisar os projetos do setor no país.
Entrevistado pela coluna, José Tavares de Araujo Jr. explicou que foi a partir da leitura de dezenas de relatórios oficiais do Banco Mundial e de empresas ferroviárias estatais dos Estados Unidos, Canadá, China, Índia e outros, que constatou que o Brasil é o único país de proporções continentais onde não existe um sistema ferroviário para transporte de pessoas. O estudo de Tavares revela ainda como modelos de gestão subsidiados pelos governos desses países são mantidos há décadas.
Coluna – Para entender o cenário, podemos começar pelo transporte de cargas? As estradas de ferro para movimentação de cargas também merecem uma revisão de projetos?
José Tavares – Há décadas o Brasil enfrenta a tarefa de reverter o declínio no setor ferroviário, buscando atrair investimentos privados e modernizar a infraestrutura. Antes do novo PAC, em 2021, foi aprovado o Marco Legal das Ferrovias, instrumento criado para tentar estimular o crescimento do modal de transporte ferroviário, a partir da flexibilização das regulamentações e de parcerias público-privadas. De lá para cá, são pelo menos 38 projetos ferroviários autorizados pela ANTT para transportes de cargas e um para implantação de um trem de alta velocidade, entre Rio e São Paulo. A expectativa é de que 85% das obras sejam concluídas entre 2025 e 2033. Mas isso ainda está longe de um cenário ideal. Nós temos 21 mil km de estradas de ferro em operação, o que é menos de 10% do que existe na Europa ou nos Estados Unidos, por exemplo. Nestes países, são movimentadas uma grande diversidade de cargas. No Brasil, os minérios representam, em média, 70% do que movimentamos sobre os trilhos, enquanto os grãos ocupam entre 10% e 17%. Por isso, na falta de vagões, a produção vai pelas rodovias, mantendo altos os índices de impacto ambiental e desfavorecendo as estatísticas sociais para o desenvolvimento das cidades.
Coluna – Insistindo um pouco mais na parte de cargas, como as operações ferroviárias brasileiras se diferem de outros países?
José Tavares – Nossas ferrovias são controladas por quatro grandes players. Essas empresas percorrem menos de 40% do território brasileiro, para escoar minérios e produção agrícola, em grande parte. Nos países observados, incluindo os serviços de transportes de passageiros, há um estímulo constante à concorrência. Utilizando como exemplo, novamente, os EUA, as linhas são controladas por cerca de 600 firmas privadas, mas o estado exerce um papel fundamental para garantir a expansão das ferrovias e os bons resultados das operações. No modelo adotado, a eficiência dos serviços de frete ferroviário passa pela estatal (Federal Railroad Administration – FRA), criada em 1966, com a missão de fomentar a concorrência entre as firmas líderes do mercado e provoca ferrovias menores para que também pressionem o setor.
ML – Mas diferentes realidades observadas entre os países e o Brasil não interferem nesses achados sobre trens de passageiros?
José Tavares – Na verdade, a análise comparativa do setor ferroviário brasileiro em relação a outras economias globais revela um quadro marcado por desafios, mas também oportunidades. Tomemos como exemplo a inauguração da linha Tóquio–Osaka, em 1964. A linha marcou não apenas a entrada do trem de alta velocidade no cenário da população japonesa, mas também definiu um novo modelo de intervenção estatal no transporte ferroviário de passageiros e cargas, um modelo que tem sido adotado com resultados variados em economias tão diversas quanto Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia, Japão, Rússia, União Europeia e Tailândia.
Coluna – Intervenção estatal nos EUA não pode ser um motivo de controvérsia política?
José Tavares – Tradicionalmente, poderia. Mas o que se viu foi um debate suprapartidário e resultados espetaculares para o setor. No modelo observado, a Amtrak, a empresa estatal estadunidense, recebe subsídios regulares do governo para atender aos projetos ferroviários. Para 2024, estão previstos repasses de US$ 3,8 bilhões. Ao adotar esse modelo, implica em uma enorme transparência de dados e análise de relatórios anuais pelos congressistas, sejam democratas ou republicanos, que aprovam os gastos e as projeções da estatal. A Amtak atua até mesmo no Canadá, ao lado de uma estatal do país, a VIA Rail Canada, em rotas específicas, demonstrando expansão da rede ferroviária na América do Norte. As 46 mil km de estradas de ferro canadenses para cargas são operadas por 60 empresas privadas.
Coluna – Entre essas linhas ferroviárias, estamos falando também de transporte de alta velocidade?
José Tavares – Sim. A China, em particular, construiu uma extensa rede de trens de alta velocidade. Com apoio do Banco Mundial, o governo chinês investiu U$ 19 bilhões no setor. Há 12 anos, os chineses fazem o percurso de 1.318 km, de Pequim a Xangai, em 4h30 ao custo de U$ 99, na classe econômica. Outro país importante para esta análise é a Índia que, embora não tenha nenhum trem de alta velocidade, existe a Radjhavi Express que opera 24 rotas entre a capital Nova Deli e principais capitais estaduais do país, em em velocidades entre 100 e 130 km/h. Para os brasileiros, resta aguardar a implantação da linha de TAV de 378 Km, Rio-São Paulo.
Coluna – Nessa escala, onde fica o Brasil?
José Tavares – Não há expectativas para o transporte de passageiros no Brasil. Enquanto em muitos países a manutenção e modernização do transporte ferroviário de passageiros é uma prioridade permanente do governo, aqui, esse setor foi praticamente extinto nas últimas cinco décadas. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, de uma forma geral, considerando a extensão total da malha ferroviária no Brasil, ainda estamos abaixo de países como a Argentina, França e África do Sul. Na comparação de matrizes de transporte de carga, também estamos longe de uma liderança, uma vez que apenas 17% das movimentações são feitas por ferrovias aqui. Esse percentual é bem maior na Austrália, com 43%, na China, 37% e Canadá (46%).
Coluna – Como se justificaria para o mercado e, principalmente, para a camada política do país, a adoção de um modelo de gestão com o estado como interveniente nos projetos ferroviários?
José Tavares – Conceitualmente, a estrutura ferroviária pode ser categorizada como um bem praticamente público ou como bem coletivo, segundo diversos autores. Nestes projetos, é bastante complexo antecipar o grau de incerteza vinculado aos investimentos que, frequentemente, consistem em montantes substanciais, operando em prazos de maturação prolongados e sujeitos a imprevistos eventuais durante a fase de construção da ferrovia. Veja o exemplo clássico do Eurotunnel, entre o Reino Unido e França, iniciado em meados dos anos 1980. Na época, o consórcio que venceu a licitação para construir o túnel de 50km no Canal da Mancha, financiaria o projeto de mais de 4,8 bilhões de libras com recursos privados. O grupo quase foi à falência, levou mais tempo para concluir e, por fim, precisou contar com apoio financeiro dos governos francês e inglês. Outro ponto de maior relevância a ser considerado, está na incapacidade da empresa operadora da ferrovia de apropriar-se da maioria dos benefícios gerados. Me refiro à redução das emissões de CO2, mobilidade da mão de obra, melhoria da qualidade de vida urbana, acesso a novos mercados e reestruturação industrial. E, por tudo isso, a alocação de recursos públicos se torna essencial para superar os desafios inerentes aos altos investimentos e às incertezas associadas à construção de infraestruturas ferroviárias.
Coluna – E qual é o maior obstáculo das últimas décadas para que os trens de passageiros recebam recursos e projetos?
José Tavares – A indiferença.