Bolsonarismo chama de “intervenção” o limite constitucional entre poderes
A Constituição de 1988 copiou o sistema de freios e contrapesos consagrado há mais de 200 anos, no qual um poder deve sempre fiscalizar o outro
As decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que têm imposto limites em ações do governo, causando espanto e críticas, até radicais, do chefe do poder executivo e de alguns de seus ministros oriundos da área militar, não são nem de longe uma novidade no direito constitucional. Foram inspiradas na Constituição americana promulgada em 1789, que adotou a doutrina do check and balances – chamada, no Brasil, de freios e contrapesos.
Em 2020, contudo, é ignorada por integrantes da alta cúpula do governo federal, em um claro combustível para protestos antidemocráticos contra a corte. Aos seus interlocutores, os ministros do Palácio do Planalto dizem que está havendo uma interferência indevida em área do executivo.
Criticado pelo governo Jair Bolsonaro, o conceito defende que, numa democracia, um poder deve fiscalizar o outro constantemente. Esse tipo de fiscalização entre poderes nasceu da simples ideia de conter arroubos autoritários, de quem quer que seja. Acabou copiado não só pela Constituição brasileira de 1988, mas também pela de 1946.
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Clique e AssineVamos dizer que um ministro de Estado, como o da Educação, ou seja um cargo no topo do poder público federal, defenda algo absurdo como a prisão dos 11 ministros do STF, chamando-os de “vagabundos”. Ou se um ministro do Meio Ambiente passar a defender afrouxar as leis relacionadas à proteção ambiental brasileira, enquanto a imprensa está distraída com outro assunto como uma pandemia, abrindo espaço para o desmatamento.
Nos dois casos, o Congresso pode chamar os ministros para depor em suas comissões e questiona-los sobre suas declarações, ou mesmo o STF pode determinar o depoimento de um desses ministros, se houver uma investigação previamente aberta para apurar ações antidemocráticas contra um dos poderes da República. A fiscalização do poder legislativo e do poder judiciário passam, assim, a ser preponderantes.
Outro exemplo excelente para explicar o sistema de freios e contra pesos pode ser a nomeação de um diretor-geral da Polícia Federal. O cargo é de livre nomeação do presidente da República? É. O STF pode revisar a designação? Pode, desde que haja a motivação jurídica para a suspensão ou mesmo a anulação da indicação. Mas a Constituição não detalha que o STF pode revogar a nomeação do cargo de diretor-geral da Polícia Federal.
Mesmo não estando especificamente no texto constitucional, a Carta Magna diz que os atos administrativos podem ser revisados pela corte quando há a suspeita de se ferir o principio da impessoalidade. Uma simples acusação de que o presidente deseja politizar um órgão de estado, como a PF, feita por um ex-ministro da Justiça do governo, serve para justificar a revogação do ato pela suprema corte.
É também pela existência dos freios e contrapesos que um ministro do STF, ao ser indicado para o cargo, passa por uma sabatina de várias horas no Senado. O mesmo acontece com um procurador-geral da República. Nesses casos, a ideia é avaliar se as nomeações estão de acordo com o previsto na Constituição e se esses agentes públicos entendem o conceito de independência entre os poderes quando passarem a ocupar esses cargos.
Todo estudante de direito conhece a lição do caso Marbury contra Madison, julgado na Suprema Corte Americana, em 1803. O processo redefiniu as relações entre os poderes e se tornou o ponto inaugural do sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade, o chamado check and balances.
Na ocasião, uma nova lei de organização do Poder Judiciário foi aprovada nos EUA e possibilitou ao então presidente John Adams nomear vários juízes de uma só vez, entre eles, o presidente da Suprema Corte. O tempo exíguo para expedir os diplomas dessas nomeações acabou permitindo que Thomas Jefferson assumisse a presidência. As designações de alguns cargos acabaram contestadas na Suprema Corte e tiveram atuação independente do presidente do Tribunal recém nomeado, mesmo que isso tenha implicado em decisões contrárias ao governo que o nomeou.
Neste contexto do importante episódio norte-americano, duas frases do voto do relator do caso se destacaram e acabaram eternizadas no ordenamento jurídico dos Estados Unidos. A primeira delas é a de que ninguém convencerá o país de que a Suprema Corte fará um mero papel decorativo. E a segundo é que ninguém está acima da lei, nem mesmo o presidente da República.
O Brasil não adotou todo o sistema de Justiça dos Estados Unidos, mas introduziu de forma idêntica a doutrina dos freios e contrapesos. Só não se imaginava que, após cristalizada em diversos países do mundo, ela seria questionada como algo ruim, pelo alto escalão do governo brasileiro, mais de 200 anos depois do seu importante nascimento.