A prisão em flagrante do anestesista Giovanni Quintella Bezerra pelo estupro de uma mulher durante uma cesariana num hospital em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, só foi possível graças à gravação do crime por um grupo de enfermeiras, que colocaram um equipamento celular em um armário do centro cirúrgico.
As circunstâncias da gravação, no entanto, já suscitam dúvidas a respeito da validade dessa prova, em razão de um dispositivo inserido na legislação pelo Pacote Anticrime, de 2019, que prevê o seu uso apenas pela defesa. O parágrafo 4º do artigo 8ª-A da Lei 9.296/1996, passou a ter a seguinte redação: “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.”
O presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou a vetar o dispositivo, alegando que ele contrariava o “interesse público”, “uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará”. O veto, no entanto, foi derrubado pelo Congresso. Por entender que, por conta da lei, a gravação pode não ser utilizada como prova contra o médico, o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP) apresentou na quarta-feira, 13, um projeto para alterar a redação e incluir o uso das gravações “em favor da vítima”.
“O caso do médico estuprador permitirá testar a interpretação/constitucionalidade do artigo 8º-A, § 4º, da Lei 9.296/96. A redação do dispositivo é muito ruim (…), mas é possível interpretá-lo de modo a reconhecer a validade de gravações como as feitas nesse caso”, opinou o procurador da República Bruno Calabrich, em sua conta no Twitter.
Especialistas concordam que a redação do dispositivo poderia ser melhor, mas isso ainda é incapaz de levar à impunidade do médico porque há outros elementos em questão — como a impossibilidade da vítima de se defender, já que estava sedada pelo anestesista, e a gravação ter se dado num espaço público. “Crimes dessa natureza são cometidos de forma clandestina e em geral têm como única prova a palavra da própria ofendida, que não seria possível ter neste caso. Assim, até por uma questão de razoabilidade e proporcionalidade, diante das circunstâncias existentes, acredito ser possível a utilização do vídeo para fins penais”, afirma o advogado Sérgio Bessa, especialista em Direito Penal do Peixoto & Cury Advogados.
O criminalista Diego Henrique, sócio do Damiani Sociedade de Advogados, alerta que a redação legal “possibilita um sem número de questionamentos sobre eventuais gravações/captações ambientais que registrem o cometimento de delitos”. Segundo ele, o dispositivo visa resguardar os direitos à intimidade e à privacidade e garantir que gravações clandestinas não sejam validadas como provas acusatórias. “No caso sequer há dúvidas quanto à licitude da prova, na justa medida que não há que se falar em direito à intimidade do médico em uma sala de cirurgia de um hospital público, menos ainda se pode dizer que houve violação da obrigação de sigilo intrínseco à relação médico/paciente, uma vez que este resguarda tão somente a privacidade e a intimidade do paciente e não pode ser usado em seu desfavor”, acrescenta.
A constitucionalista Vera Chemim faz avaliação semelhante. “O direito fundamental à liberdade e à intimidade não são absolutos, especialmente quando contribuem, fundamentalmente, para a elucidação da prática de um ato ilícito”, diz. Ela lembra ainda que há precedentes do Supremo Tribunal Federal que autorizam o uso de gravações telefônicas por terceiros e que podem ser aplicados ao caso. “A gravação feita pela equipe de enfermeiras não pode ser considerada prova ilícita tendo em vista que o bem jurídico maior alheio – a dignidade da grávida – estava em risco, relativamente à suposta intimidade do agente (profissional de saúde) que estava cometendo um crime”, conclui.
Ação no STF
O ponto polêmico inserido pelo Pacote Anticrime já é alvo de contestação no STF, por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade em 2021. Em parecer sobre o caso emitido no início deste ano, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirma que o trecho é inconstitucional.
“Invalidar gravações ambientais ou desprezá-las quando verificada integridade das provas, apenas por serem usadas pela acusação e não pela defesa, mostra-se incompatível com o princípio da igualdade, inviabiliza a paridade de armas no contexto do processo penal e tem o potencial de gerar a impunidade de ofensores para cuja resposta estatal é imperiosa”, diz Aras.