O orçamento secreto acarretou duplo retrocesso: (1) a piora na alocação de recursos públicos e (2) a afronta ao jogo eleitoral e à democracia. É a versão moderna do coronelismo, um fenômeno da República Velha (1889-1930) que envolvia ações voltadas para o equilíbrio federativo e minava a representação política. A origem do nome está na Guarda Nacional do Império. Pessoas influentes recebiam patentes militares — como a de coronel — para exercer posições de comando na corporação.
O coronelismo funcionava por meio de tráfico de influência e corrupção. Latifundiários e oligarcas lideravam campanhas e fraudes eleitorais. Em troca do voto de cabresto, ofereciam alimentos, remédios, vagas em hospitais, empregos e até dinheiro vivo. Poucos se elegiam sem seu patrocínio. O fenômeno baqueou sob o efeito do voto secreto (1932), mas sobreviveu em regiões menos desenvolvidas. Praticamente sumiu com a redução da pobreza proporcionada pelo programa Bolsa Família.
“Os donos do orçamento secreto o defendem disfarçando-o de benefícios aos municípios”
Nestas eleições, o coronelismo renasceu de outra forma. A revista Piauí mostrou que partidos do Centrão distribuíram mais de 6,2 bilhões de reais do orçamento secreto para reeleger pelo menos 140 parlamentares. O PL, do presidente Bolsonaro, reconduziu sessenta deputados utilizando 1,6 bilhão de reais de emendas. Segundo o jornal O Globo, dez dos treze deputados beneficiados com verbas acima de 100 milhões se reelegeram com mais votos do que em 2018. O presidente da Câmara, Arthur Lira, destinou 492 milhões de reais, o maior valor entre parlamentares, a sua base eleitoral. Foi o deputado mais votado de Alagoas.
No coronelismo, a corrupção e o clientelismo constituíam a fonte do poder que beneficiava candidatos a cargos eletivos. O processo eleitoral e a democracia eram enodoados pela atuação deletéria desses indivíduos. A competição política era desigual em favor dos que recebiam seus favores. Agora, esse papel passou a ser exercido, de certa forma, pelos que têm acesso ao orçamento secreto. Naqueles tempos, os donos do poder buscavam disfarçar a origem de sua influência. Agora, os donos do orçamento secreto o defendem publicamente, disfarçando-o de benefícios aos municípios. E até ameaçam torná-lo dispositivo constitucional se o Supremo Tribunal vier a reconhecer sua inequívoca inconstitucionalidade.
O processo orçamentário brasileiro foi modernizado na segunda metade da década de 80 com reformas que, entre outras, extinguiram a conta movimento do Banco do Brasil, aboliram o Orçamento Monetário (duas fontes ilegítimas de gastos públicos) e criaram a Secretaria do Tesouro Nacional. Muitos, como este escriba, têm pugnado por novos esforços de modernização, que deveriam incluir a substituição da defasada Lei 4.320, de 1964, que estabeleceu as regras atuais do Orçamento. Ninguém poderia imaginar que haveria a marcha a ré do orçamento secreto e, pior, a deterioração da democracia. É hora de lutar para que se extinga essa aberração institucional.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812