Nesta semana, um episódio protagonizado pela Anvisa tomou conta da mídia brasileira, com enorme repercussão internacional. A agência negou a importação da vacina Sputnik V, solicitada por dez estados brasileiros. Entenda por que a agência agiu corretamente e os argumentos científicos que levaram ao veto.
A questão do vetor replicante
É necessário entender a afirmação mais grave da Anvisa, visto que esta, em tese, pode significar que parte das milhões de pessoas já vacinadas pela Sputnik V no mundo, tenham sido expostas a um risco desnecessário e não informado previamente pela fabricante da vacina, o Instituto Gamaleya, da Rússia. Trata-se da possível presença na formulação final da vacina de “vetores replicantes”. No desenvolvimento de vacinas para Covid-19, as empresas Astrazeneca, Janssen, Gamaleya e outras, usam em suas vacinas Adenovírus para carregar a sequência genética da proteína Spíke do Coronavírus para dentro de nossas células e provocar nossa resposta imunológica.
Em etapas de desenvolvimento destas vacinas estes Adenovírus são previamente modificados para, quando dentro do nosso corpo, não tenham a capacidade de causar a infecção pelo Adenovírus, e que o Adenovírus sirva somente para transportar Spike para dentro de nossas células. Para isto, no processo de engenharia genética do vetor, retira-se ao menos um gene do genoma do Adenovírus, o gene E1, pois este é o principal gene que permite ao Adenovírus se dividir. Sem E1 em seu genoma, após entregar a cópia do gene Spike às nossas células, o Adenovírus “não vai em frente”, ou em termos técnicos, não se replica (vetor não replicante).
O Adenovírus vira então um Vetor de Adenovírus. Desenvolvido o vetor sem E1 e com Spike, é necessário produzir várias cópias deste vetor, mas agora o vetor não se divide mais sozinho. Então ele é colocado junto com células que estimulam a cópia do vetor. É sabido que nesta etapa do processo alguns destes vetores (que agora já estão sem o gene E1) podem “roubar e recuperar” o gene E1 destas células, e retornar a sua composição genética original, infectante, replicativa. Não se deseja que esta versão infectante esteja presente na composição final da vacina, porque desta forma os vacinados se infectariam com o Adenovírus, que apesar de na maioria das vezes não causar maiores problemas de saúde, pode, sim, causar problemas graves especialmente em pessoas que realizaram transplante de medula, que tenham baixa imunidade e em gestantes. Portanto, existem procedimentos padronizados de controle de qualidade para detectar em cada lote de vacina se houve a formação de vetores replicantes, e caso positivo, em que proporção em relação aos não replicantes.
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Há 28 anos os pesquisadores desenvolveram vetores de Adenovírus para tentar curar doenças genéticas e há 20 anos o FDA determinou o limite máximo de vetores replicantes em um produto recombinante
A tecnologia para retirar o gene E1 é conhecida e dominada por vários países há muito tempo, incluindo a Rússia. Desde 1993 vetores de Adenovírus são usados em procedimentos de terapia gênica para tentar tratar doenças genéticas até hoje incuráveis, como a Fibrose Cística. Sabe-se desde então que é difícil evitar completamente a presença de doses mínimas de vetor replicante na formulação final da vacina. Ciente desta limitação, há 20 anos atrás o FDA determinou um limite máximo de vetores de Adenovírus recombinante que seria tolerável sem maiores repercussões (Food and Drug Administration, BRMAC Meeting 30: adenovirus titer measurements and RCA levels, 5 April 2001. Food and Drug Administration, Rockville, Md. https://www.slideserve.com/jory/responses-to-fda-gene-therapy-letter-adenovirus-vector-titer-measurements-and-rca-levels).
Uma vacina que é produzida e divulgada como sendo de vetor de Adenovírus não replicante, idealmente não deveria ter nenhum Adenovírus replicante, mas, de acordo com este documento do FDA ficou definido que se tolera uma pequena fração de Adenovírus contendo o gene E1 que é replicante, e este limite máximo tolerado é ter MENOS do que 1 Adenovirus com capacidade de replicação para cada 3X1010 partículas virais sem capacidade de replicação. Um exemplo desta tolerabilidade foi recentemente demonstrado na formulação de vetores usados na vacina para Covid-19 produzida pela Oxford/Astrazeneca, que possui quantidades mínimas, porém toleráveis, de proteínas provenientes do vetor replicante, misturado a grande quantidade de vetor desejado, o não replicante (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33722288).
Quantos vetores de adenovírus replicantes seriam permitidos por dose da vacina Sputnik, pelo FDA?
Diferente das outras inúmeras falhas documentais do Instituto Gamaleya apontadas pela Anvisa , a afirmação contundente da Anvisa de que existiam vetores replicantes em quantidade acima do limite aceitável em todos os lotes da vacina Sputnik V analisadas, é muito grave, pois as outras não conformidades apontadas pela Anvisa podem ser resolvidas refazendo alguns experimentos e principalmente enviando as documentações solicitadas. Mas a afirmação da presença de vetores replicantes tem o potencial de impedir de maneira definitiva a aprovação não só no Brasil, mas em dezenas de países em que a vacina já foi e seria aplicada. A própria Anvisa na apresentação aonde divulgou o veto a aprovação da Sputnik V usou como referência de seus slides o critério determinado pelo FDA, que diz que o limite máximo de vetores replicantes deve ser MENOR do que 1 vírus com capacidade de replicação para cada 3X1010 partículas de vírus sem capacidade de replicação.
Pois bem, então para saber qual quantidade de vetores replicantes poderia seria tolerada em cada dose da Sputnik V, temos que saber quantos vetores (partículas virais) são injetados em nós em cada dose da vacina Sputnik V. Segundo o próprio Instituto Gamaleya uma dose da Sputnik V contem (1.0 ± 0.5) × 1011 partículas virais. Então em uma dose da Sputnik V que contenha 1.0 × 1011 partículas virais, seria tolerável (segundo o critério do FDA) conter MENOS que 3,3 partículas virais com capacidade de replicação. Mas se existem vetores de adenovírus replicante na vacina, por menor que seja o número e mesmo que dentro do limite tolerável, os fabricantes devem demonstrar se e qual impacto isto poderia trazer as pessoas que vão receber esta vacina. Os russos não apresentaram estes estudos.
Qual o limite máximo de vírus replicante estabelecido pela própria empresa Gamaleya produtora da vacina Sputnik?
Segundo a Anvisa, em declaração feita pela relatora Meiruze Sousa Freitas, Gerente Geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, no dia do anúncio do veto à Sputnik (https://www.gov.br/anvisa/pt-br/composicao/diretoria-colegiada/reunioes-da-diretoria/votos/2021/copy2_of_rextra-7-de-2021/voto-66-2021-dire2.pdf), o limite máximo de vírus replicantes estabelecido pela própria empresa Gamaleya produtora da vacina Sputnik é de 1 x 103 vetores replicantes por dose de 1 x 1011 partículas virais, ou seja, mil vetores replicantes por cada dose da Sputnik.
Portanto, o critério do Gamaleya tolera, para uma dose da vacina Sputnik, cerca de 300 vezes mais vetores replicantes do que os limites permitidos pelo FDA! Sendo ainda mais detalhado, o Instituto Gamaleya informa que uma dose da vacina Sputnik pode conter uma variação no número de partículas virais, variando de 0,5 x 1011 partículas virais até 1,5 x 1011 partículas virais. E levando em conta esta variabilidade e sua implicação no número máximo de vetores replicantes por dose da Sputnik, de acordo com o FDA, que admite MENOS de um vetor replicante a cada 0,3 x 1011 partículas virais, uma dose de Sputnik que contenha 0,5 x 1011 partículas virais seria tolerável se contiver menos que 2 partículas virais com capacidade de replicação; já nesta formulação o Instituto Gamaleya toleraria a presença de 500 partículas virais com capacidade de replicação.
Se uma dose de Sputnik contiver 1,5 x 1011 partículas virais, o FDA toleraria conter MENOS que 5 partículas virais com capacidade de replicação; já o Instituto Gamaleya toleraria a presença de 1.500 partículas virais com capacidade de replicação. Em resumo, o FDA permite de 1 a 4 vetores replicantes em cada dose da Sputnik, e a agência russa permite a presença de 500 a 1.500 vetores não recombinantes em cada dose da Sputnik. Ou seja, o Instituto Gamaleya estabeleceu uma tolerância 300 vezes maior do que o FDA!
Falta de transparência nos dados enviados pelo Instituto Gamaleya à Anvisa foi importante para o veto
Ressalte-se que a Anvisa não fez testes para quantificar os vetores replicantes nos lotes da Sputnik, até porque me parece que não é uma função obrigatória da Anvisa fazer testes, mas sim analisar a documentação enviada pelo próprio fabricante. Baseado nos laudos do próprio fabricante Instituto Gamaleya, a Anvisa declarou que em todos os lotes havia um excedente ao número máximo de vetores replicantes. Como não bastasse esta confusão, nos dados apresentados pelo Instituto Gamaleya para a Anvisa , consta que as amostras estudadas tiveram “MENOS que 1 x 102 vetores replicante por dose”, mas não ficou especificado qual o valor exato.
O lote conteria 0, 3, 33 ou 99 vetores replicantes? Como viram na explicação numérica acima, uma pequena variação pode ser determinante para ultrapassar ou não os delicados limites aceitos. Ou seja, não ficou totalmente claro se os lotes estavam ou não dentro do padrão aceito pelo FDA. Ressalte-se que nos dados enviados pelo Gamaleya á Anvisa o mesmo método usado em amostras de placebo teve como resultado vetores replicantes “não detectados”, sugerindo que “MENOS que 1 x 102 por dose” era algo detectado, e não “zero”. Para complicar um pouco mais, a comunidade científica entende que estas diretrizes do FDA, que foram escritas há exatos 20 anos atrás, foram destinadas prioritariamente à regulamentação de procedimentos de terapia gênica para tratar pessoas com doenças genéticas. Aqui estamos falando de vacinas para pessoas saudáveis.
O risco/benefício de receber uma pequena dose de Adenovírus replicante talvez seja tolerável para um número limitado de pessoas que tem uma determinada doença genética grave e incurável, mas talvez não para milhões de pessoas saudáveis que receberão uma vacina, entre elas pessoas que necessitaram fazer transplante de medula óssea, ou que tenham deficiências imunológicas, ou estejam gestando. Neste grupo de pessoas vulneráveis, uma dose inicial não tão elevada de Adenovirus replicante pode se tornar uma dose alta em pouco tempo dentro do organismo.
A ANVISA também falhou na comunicação dos dados em sua apresentação inicial
Na apresentação inicial feita pela Anvisa chamou a atenção outro aspecto; a Anvisa (quero crer que pressionada em dar o parecer dentro do limite de tempo recentemente estabelecido pelo STF), cometeu falhas de comunicação. Por exemplo, o Gerente Geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa Gustavo Mendes Lima Santos, que vem fazendo um trabalho digno de elogios, apresentou um slide que tinha o objetivo de demonstrar que os russos admitem que há Adenovírus replicante e que toleram a presença destes vetores replicantes na vacina Sputnik.
Pelo todo acima exposto fica claro o quanto este slide seria decisivo para compreendermos o aspecto mais sensível do veto da Anvisa ! Porém, no slide apresentado na primeira apresentação da Anvisa , a informação era exatamente contrária ao que a Anvisa falava. O slide apresentado mostrava que os pesquisadores russos, sabedores da possibilidade da existência de vetores recombinantes no processo de produção de vacinas vetoriais, usavam metodologias de controle de qualidade para identificar esta possibilidade.
Se a Anvisa corretamente exige as informações detalhadas por parte do Instituto Gamaleya, também teria que repassar as informações corretas e detalhadas à nossa população. A Anvisa prima pela máxima transparência, e é verdade que divulgou em seu portal as apresentações completas que as áreas técnicas da Agência fizeram sobre a vacina Sputnik V durante a reunião extraordinária da Diretoria Colegiada realizada na última segunda-feira, 26/4/2021 (https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/informacoes-sobre-a-reuniao-que-negou-a-importacao-da-Sputnik-v-solicitada-por-10-estados ). Mas os detalhes sobre o aspecto mais polêmico da decisão da ANVISA não foram demonstrados na apresentação inicial, gerando um clima de incerteza ao final da reunião. Como veremos adiante, aconteceu uma segunda apresentação da ANVISA nesta quinta-feira 29/4/2021, aonde a ANVISA se recuperou da falha cometida na primeira apresentação.
Em que ponto o impasse se encontra?
O mais recente (mas certamente não o último) episódio desta novela é que os Russos afirmam que não ha um único lote da vacina SPUTNIK com Adenovirus replicante e ameaçam processar a Anvisa (vide nota oficial do Instituto Gamaleya https://Sputnikvaccine.com/newsroom/pressreleases/Sputnik-v-statement-on-brazilian-health-regulator-anvisa-s-decision-to-postpone-authorization). Já a Anvisa fez nova apresentação nesta quinta feira 29/4/2021, aonde apresentou inúmeras informações que faltaram na primeira apresentação, aclarando muitas dúvidas, como os detalhes fornecidos pelos próprios pesquisadores do Gamaleya, e inclusive vídeos que claramente demonstram que a Anvisa discutiu com os russos o tema há mais de um mês atrás, e nunca obteve respostas satisfatórias.
Apenas na segunda apresentação da Anvisa ficou claro que os pesquisadores russos admitem que a tecnologia por eles usada na formulação da vacina, ao contrário do que afirmam oficialmente, pode gerar vetores replicantes. Inclusive os vídeos demonstram claramente que os russos não modificaram isto porque tomaria muito tempo.
Diante dos fatos a minha opinião sobre o veto á Sputnik pela ANVISA é que a falta de documentação solicitada, a não permissão de que inspetores da Anvisa visitassem as instalações do Instituto Gamaleya estando eles na Rússia com este intuito, a falta de transparência e talvez até de controle de qualidade sobre os vetores replicantes na vacina Sputnik, são argumentos mais do que suficientes para a Anvisa não ter aprovado ainda a utilização desta vacina. Uma notícia ruim para todos, pois os russos querem vender sua vacina e nós precisamos desesperadamente comprar mais vacinas. Mas se a Rússia quer vender vacina no Ocidente, tem que se adaptar às regulamentações do Ocidente.
Alguns pesquisadores, tentando encontrar uma “solução salomônica” para o impasse, já sugerem que se, e depois do Instituto Gamaleya complementar toda as informações faltantes e duvidosas, a Anvisa poderia aprovar a Sputnik para aplicação em jovens saudáveis, até porque estes rotineiramente recebem vacinas de vírus vivos atenuados, sem maiores problemas.
Que lições já podemos aprender deste episódio?
A polêmica é grande, mas o episódio mostra que em nosso país vacinas são rigorosamente analisadas antes de serem aplicadas massivamente na população. E que a pressão da pandemia não faz estas rígidas regras mudarem. Também fica claro a importância de termos uma agencia regulatória ágil, séria, capacitada e imune a interferências políticas, para que os brasileiros possam se sentir protegidos quanto aos produtos que utilizarão, em especial quando estamos falando de vacinas para milhões de pessoas.
Temos cobrado da Anvisa a celeridade que uma pandemia que já matou mais de 400 mil brasileiros exige, mas ao mesmo tempo que não abra mão de nossa segurança. Para atingir este patamar de exigência, talvez seja necessário o planejamento de mais investimento na estrutura da Anvisa , tornando-a ainda mais ágil, capacitada e transparente. Em um mundo aonde informações valem vidas, “transparência” é o nome da moeda. A Anvisa pecou por falta de organização e transparência no primeiro momento, mas rapidamente, um dia depois, mostrou transparência. Os russos, até este momento ainda estão opacos.