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Um furto de R$ 4 desnuda a crise do Judiciário

A lei, a lógica e o bom senso indicam que deveria ter acabado na delegacia mineira mas o caso do par de bifes de frango avançou e mostrou a crise da Justiça

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 jun 2021, 16h35 - Publicado em 9 jun 2021, 09h00
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  • O par de bifes de frango reluzia na geladeira do supermercado, ao lado do aviso iluminado: cada um custava dois reais — o equivalente a uma fatia de 0,42% do salário mínimo daquele 2017.

    Ele olhou, embolsou e saiu apressado. Flagrado, detido, foi parar diante do delegado de polícia, surpreso com um caso de valor tão baixo.

    O policial entendeu a “condição de miséria” e fez questão de listar no boletim de ocorrência todos os indícios de que aquele homem roubara dois pedaços de carne porque tinha uma necessidade urgente e relevante: fome.

    O que diz o Código Penal

    A lei é clara sobre essas situações. O Código Penal prevê (artigo 155) o “furto famélico”, uma criação doutrinária para absolver quem, na extrema penúria, rouba alimento para matar a própria fome ou da família.

    A lei e a lógica indicam que tudo deveria ter acabado na delegacia de um bairro de Belo Horizonte. Mas o furto de R$ 4 avançou e desnudou a crise do Judiciário brasileiro.

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    O Judiciário de Minas Gerais resolveu deixar de lado o bom senso. Fez desabar toda sua força sobre uma pessoa pobre e faminta, aprisionando-a por quatro anos num processo de bagatela — dois bifes, quatro reais na época, hoje seis, se aplicada a correção monetária (IGPM-FGV).

    O epílogo só ocorreu na segunda-feira, mais de 200 semanas depois de muito dinheiro público desperdiçado, quando o Superior Tribunal de Justiça proclamou um basta em habeas corpus (nº 126272) apresentado pela Defensoria Pública.

    Os juízes da Sexta Turma do STJ registraram sua perplexidade com a insistência do Ministério Público e do Judiciário de Minas “levar adiante um processo criminal de tão notória inexpressividade jurídico-penal”.

    O caso do furto famélico saiu das mãos dos promotores locais, percorreu inúmeras mesas da burocracia judiciária e aterrissou na pauta do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

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    O Judiciário mineiro é dos mais caros do país. Em 2017, quando o tribunal se dedicou ao processo, cada juiz local custava R$ 52.832,96 por mês aos 21 milhões de habitantes, segundo o Conselho Nacional de Justiça. Em valores atualizados, significa R$ 80.846,66 mensais.

    Como ocorre nos outros Estados e em Brasília, o custo é inflado pelo pagamento de uma série de penduricalhos que derivam em supersalários, como auxílio-moradia (mesmo com casa própria), auxílio-saúde e até auxílio-livro, além de carro oficial, motorista e segurança. Os critérios de férias (60 dias por ano) permitem “indenizações” — em 2019 um deles recebeu R$ 674 mil.

    Os desembargadores mineiros realizaram um profundo debate sobre a aplicação do princípio da insignificância jurídico-penal. Concluíram, por maioria, que se aplicado a esse episódio de fome explícita o resultado prático seria um “desprestígio” da função preventiva da lei, passível de estimular até mesmo uma escalada “criminosa” no Estado.

    Assim, depois de três anos de passeio pela burocracia judiciária mineira, um recurso da Defensoria Pública fez o caso do um par de bifes de frango roubado migrar de Belo Horizonte para Brasília.

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    O Superior Tribunal de Justiça é o organismo responsável por uniformizar a interpretação das leis federais, instância de solução definitiva dos casos civis e criminais comuns.

    O juiz Rogério Schietti Cruz, relator da ação do furto famélico, concluiu que promotores e juízes de Minas agiram “com excessivo rigor” e à margem de toda a jurisprudência consolidada.

    Outro juiz, Sebastião Reis Júnior, resumiu o clima de perplexidade na Sexta Turma em uma única palavra: “Absurdo”. Lembrou o volume crescente de processos (de 84,2 mil em 2017 para 124,2 mil no ano passado) e a tendência a novo recorde neste ano (132 mil).

    “Essa situação ocorre” — comentou — “porque a advocacia e o Ministério Público insistem em teses superadas, mas também porque os tribunais [estaduais] se recusam a aplicar os entendimentos pacificados aqui. E no Legislativo, discute-se o aumento das penas, mas não se debate a ressocialização e a prevenção de crimes.”

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    É problema antigo. Em 2017, quando aconteceu o furto famélico em Belo Horizonte, a Câmara dos Deputados aprovou a criação de uma espécie de filtro de acesso ao STJ, obrigando à uma prévia demonstração de relevância em relação às leis federais.

    Trata-se de uma proposta de emenda constitucional (nº 209), do deputado Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara. Há quatro anos ela está estacionada no Senado, à espera de votação.

    Enquanto isso, os casos de bagatela se repetem, provocando congestionamento judicial e, principalmente, desperdício de dinheiro público numa máquina burocrática reconhecida como das mais caras do planeta.

    O Judiciário brasileiro consome anualmente 1,3% do Produto Interno Bruto. Significa uma despesa anual de cerca de R$ 456 (US$ 91,2) no bolso de cada um dos 212 milhões de habitantes.

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    Os pesquisadores Luciano Da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Matthew M. Taylor, da American University, têm demonstrado que esse nível de gasto com o Judiciário só é encontrado na Suíça, cuja população é 25 vezes menor e a renda média cinco vezes maior.

    + Os líderes de Bolsonaro no Congresso estão atordoados

     

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