Hastes de arroz, sorgo, milho e soja emolduram uma cabeça de boi, um trator e as linhas azuis que representam abundância de água naquele pedaço do interior de Mato Grosso. Abaixo do desenho, a logomarca do município avisa: “Capital do Agronegócio”.
Sorriso não exagera. É um dos maiores produtores nacionais de soja, milho e peixes. Abriga pouco mais de 90 000 moradores ao redor de dezenas de bancos e escritórios das maiores empresas globais — Amaggi, Bunge, Cargill, Cofco, Glencore e Monsanto, entre outras. Retrata quatro décadas de êxito na modernização tecnológica do campo, na expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste e, agora, para a Amazônia.
É, também, metáfora de um país na encruzilhada: o Brasil, que vai terminar o ano com renda recorde (1,2 trilhão de reais) nas lavouras e na pecuária, sonha garantir a segurança alimentar do mundo, mas vacila em resolver a própria fome.
Exuberante na riqueza, com renda média de 69 000 reais por habitante — 40% acima da nacional —, a “capital do agronegócio” é desmesurada na pobreza. Uma de cada três famílias de Sorriso depende da ajuda estatal para comer.
Espelha contradições de um país que multiplicou por cinco suas exportações de alimentos neste século e ainda mantém um de cada dez brasileiros aprisionado no mapa-múndi da fome da ONU.
Foi no campo que ocorreu uma revolução no capitalismo brasileiro no último meio século, demonstram os historiadores Herbert S. Klein e Francisco Vidal Luna no livro Alimentando o mundo. Resultou de exemplar parceria de empreendedores com a elite de cientistas de organizações estatais, como o Instituto Agronômico de Campinas e a Embrapa.
Enquanto a indústria patinava — e assim continua desde os anos 1980 —, o agronegócio avançava amparado em inovação e tecnologia. Surpreendeu a concorrência nos Estados Unidos e na Europa com duas safras anuais, expandiu a fronteira de trabalho, aumentou em 150% a produtividade média por hectare e consolidou poder de competição internacional. Os efeitos benéficos, no entanto, se limitaram à minoria.
“O agronegócio vai precisar lutar para se manter na liderança”
É grande a concentração do capital em poucas propriedades rurais. O país tem mais de 5 milhões de estabelecimentos produtivos, e menos de 50 000 deles ficam com metade do valor da produção, segundo os dados mais recentes da Embrapa e do IBGE. Em parte expressiva do restante, mal se consegue extrair um salário mínimo mensal como renda familiar total. Aí, a rotina é vender o almoço para pagar o jantar.
A progressão da miséria rural não deriva apenas do tamanho das propriedades, indicam Klein e Luna, embora ressaltem a correlação entre tamanho da propriedade e pobreza. Para estudo das alternativas sugerem análise mais abrangente de fatores geográficos, infraestrutura, acesso ao mercado e à educação.
Até aqui o modelo do agronegócio deu certo, apesar das incongruências. Agora, o problema é o que e como o país vai fazer para sustentar sua posição de liderança no mercado de alimentos (cereais, café e proteínas), no mundo pós-pandemia e abalado pela disputa tectônica de poder entre os EUA e a China — principais clientes do Brasil.
No redesenho da economia global, países dependentes da importação de alimentos já estabeleceram como prioridade a garantia da segurança alimentar, o autoabastecimento. Isso terá reflexos no comércio mundial, concordaram empresários reunidos pela Associação Brasileira de Agronegócio (Abag) nesta semana, em São Paulo. “Há um movimento no mundo em busca de autossuficiência, vamos ter de trabalhar duro para garantir a nossa posição”, resumiu Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura. Manter-se entre líderes globais tende a ser mais desafiador do que aumentar a produtividade total no campo.
Requer outra revolução, mas com a premissa política da garantia de segurança alimentar doméstica. Isso porque a fome é fator potencial de grande instabilidade, como demonstrou o Sri Lanka dias atrás. E insegurança política é ruim para os negócios, sobretudo para investimentos estratégicos à garantia de abastecimento alimentar de clientes internacionais.
Não importa quem seja eleito presidente em outubro, é previsível que o próximo governo será fortemente pressionado a organizar políticas públicas de mitigação da insegurança alimentar. Sem isso, julgam empresários do agronegócio, vai ficar complicado sustentar a liderança brasileira no mercado global de alimentos.
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Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801