Estava tudo combinado, contra Lula.
Numa reunião virtual e “extraordinária”, nesta segunda-feira (26/8), os ditadores Nicolás Maduro, da Venezuela, e Miguel Díaz-Canel, de Cuba, assistiram ao ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, emoldurar Lula na categoria de ex-companheiro e de chefe de um dos governos “servis, traidores, rastejantes, que têm se apresentado como muito progressistas, muito revolucionários e, agora, dizem que é preciso repetir eleições [na Venezuela]”.
Na audiência figuravam, também, o presidente da Bolívia, Luis Arce, os chefes de governo de cinco países centro-americanos (San Vicente e Granadinas; Granada; Dominica, San Cristóbal e Nieves; e, Santa Lucía), além da embaixadora de Honduras em Caracas. Todos esses países, sobretudo Cuba e Nicarágua, são dependentes do petróleo da Venezuela — em geral, recebem óleo a baixo custo, em quantidade muito superior ao que consomem, e revendem o excedente no mercado internacional.
A reunião foi preparada para o ditador da Nicarágua transmitir a mensagem desejada por Maduro e apoiada pela ditadura cubana, que há mais de duas décadas opera o serviço de inteligência da Venezuela.
Ele falou por cerca de uma hora, com transmissão ao vivo para os países integrantes da “Aliança Bolivariana”, nascida do pacto de 2004 entre os falecidos Fidel Castro e Hugo Chávez.
Produziu algumas pérolas. Um exemplo: “O fascismo nasceu a partir do momento em que [Charles] Darwin disse, na Origem das Espécies, que os mais fortes eram os que sobreviveriam. Na Origem das Espécies está também a espécie humana, e a tendência da espécie humana tem sido impor-se pela força. Desde as origens da Humanidade, o fascismo já estava em incubação.”
Outro: “O Vaticano é mais um instrumento em todas estas batalhas que travamos, mais um instrumento que faz parte do conglomerado do fascismo que, de novas formas, quer dominar o mundo.”
Sobre Lula, Ortega foi claro e objetivo, em tom ofensivo: “Você se comportou, Lula, diante da vitória do legítimo presidente da Venezuela, de uma forma vergonhosa, repetindo os slogans dos ianques, dos europeus, dos governos arrastados, arrastados da América Latina. Você está se arrastando também, Lula! Está se arrastando, Lula!”
Contou ter conhecido Lula no Brasil, no início dos anos 80, quando o então nascente Partido dos Trabalhadores reuniu em São Paulo representantes de partidos e organizações de esquerda de 14 países. Esse grupo, depois, passou a ser reconhecido como Foro de São Paulo. Na sequência, Ortega teria apresentado Lula a Fidel.
“Entendo as dificuldades que o Lula tem, logicamente”, disse, compassivo. “Tinha um artigo [de jornal] que diz que no Itamaraty e em outros lugares está cheio de direitistas neoliberais que o fizeram lutar conosco.”
Continuou: “Um dia, quando o Lula foi visitar o Papa, o Lula depois nos ligou. Ligaram do Itamaraty e disseram que ele queria falar comigo, porque tinha uma mensagem do Papa. Então, primeiro, se o Papa, que é [chefe de] um Estado claramente favorável ao Império, quiser se comunicar conosco, ele pode fazê-lo, nós nos comunicamos continuamente com eles, com o chanceler, já houve várias conversas com ele… Então, não precisamos de intermediários, nem pedimos para o Lula ser intermediário. Então, não respondemos ao Lula, e ele ficou chateado.”
“Mais tarde, numa entrevista, perguntaram-lhe: ‘Por que o ditador [Ortega], depois de ter sido revolucionário, se tornou outro [como o antecessor Anastasio] Somoza’. Então, ele respondeu que, ‘na verdade, ele não é mais o que era antes, agora é outro ditador’. Então, o que, Lula, poderia te dizer, já que você falou publicamente sobre isso? Há quantos mandatos já esteve no governo? Você está no governo há dois mandatos. Quer dizer, parece que você gosta de ser presidente. E dessa presidência desse grande país, que é o Brasil, você quer se tornar o representante dos ianques na América Latina. Por isso, rompemos relações com o Brasil.”
“Você está se arrastando também, Lula! Está se arrastando, Lula!” — prosseguiu. “E não me diga que seus esforços foram extraordinários. Sim, foram extraordinários em alguns campos, quando você foi presidente pela primeira vez, mas, você também se lembra dos tumultos, dos escândalos, da Lava Jato, lembra bem de tudo isso. Ou seja, aparentemente não foram governos muito claros, muito limpos.”
Insistiu: “Lembre-se, Lula! E eu poderia mencionar mais uma dúzia de coisas. Se você quiser que eu te respeite, respeite-me, Lula. Se você quer que o povo bolivariano o respeite, respeite a vitória do presidente Nicolás Maduro e não se deixe arrastar.”
Dirigiu-se a Gustavo Petro, presidente da Colômbia, que se juntou a Lula na defesa da tese de nova eleição presidencial na Venezuela, refutada tanto pela cleptocracia chefiada por Maduro quanto pelos opositores venezuelanos. Lula e Petro ficaram isolados, à margem da ampla maioria dos governos do continente americano e da Europa que reconheceram a vitória candidato da oposição, Edmundo González.
“Para Petro, o que posso dizer para Petro?”, complementou Ortega. “Pobre Petro! Pobre Petro! Vejo Petro competindo com Lula para ver quem será o líder que representará os ianques na América Latina. É assim que vejo o Petro. Porque o pobre Petro não tem a força que o Brasil logicamente tem. O Brasil é o gigante da América Latina, o gigante, mas com esse governo que tem, do Lula, não é o gigante bom, é o Golias querendo destruir Davi na América Latina. E você não vai conseguir, Lula, você não vai conseguir.”
Voltou-se para o ditador Maduro: “Não há como voltar atrás, não há como voltar atrás, Nicolás é o presidente legítimo… Lá existem bases militares ianques, então não descartem, porque o Imperialismo hoje está mais ferido do que nunca por esta vitória. Não descartem a organização de uma contrarrevolução armada, como a que organizaram para nós em 1979-80 … A batalha seria muito maior, porque está envolvido o Exército colombiano, estão envolvidos os mercenários colombianos, os assassinos colombianos, os traficantes de drogas colombianos. Bom, e com essa fronteira enorme que você tem com a Colômbia, teríamos que nos preparar, Nicolás, teríamos que nos preparar para enfrentá-los e derrotá-los. E tenha certeza de que se essa batalha acontecer, terá combatentes sandinistas acompanhando. Estou certo de que, assim como milhares de combatentes se juntaram à batalha da Nicarágua contra Somoza, milhares de combatentes latino-americanos e caribenhos também se juntarão à defesa da revolução bolivariana.”
Ortega ecoava Maduro na tese de que a evidente fraude na eleição presidencial foi quase uma “necessidade” para preservação da Venezuela como “campo de batalha” no jogo geopolítico dos Estados Unidos com a China, apoiada pela Rússia.
O contraponto regional aos interesses dos EUA tem sido um meio de vida das ditaduras latino-americanas.
Ortega, por exemplo, entregou partes do território do seu país à soberania russa, que opera oito bases de espionagem a partir da central de Cerro Mokorón, em Manágua (os equipamentos estão distribuídos nas regiões de Chinandega, San Juan del Sur, Nueva Segovia, Caribe Norte, Chontales, em áreas de fronteira com Honduras e com Costa Rica). Nessas bases, como revelou o jornal Confidencial, os militares nicaraguenses ficam limitados à vigilância externa, o acesso está restrito aos agentes russos.
O discurso do ditador da Nicarágua, com a audiência — e a anuência— dos ditadores da Venezuela e de Cuba, deixa Lula mais órfão do que já estava na América Latina, sob o silêncio do PT que, de novo, optou por não defender o líder do partido e chefe do governo.
O Brasil avança para uma significativa derrota diplomática.