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O ano em que a democracia sobreviveu

Desde a transição da ditadura, nunca se registraram tantas ameaças ao regime. Um integrante da família presidencial confirmou a incitação ao golpe —

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 19 dez 2021, 13h33

Quando o Brasil de 2021 for posto sob a lupa dos historiadores, um evento político será incontornável ao estudo: foi o ano em que a democracia sobreviveu.

Desde a transição da ditadura, nunca se registraram tantas ameaças, veladas e explícitas, à estabilidade do regime.

A democracia “venceu”, celebrou Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal na sexta-feira, mas ainda faltam duas semanas para o ano acabar, poderiam argumentar os pessimistas.

É certo, porém, que resta uma história a ser contada em detalhes sobre quem, quando, onde, como, porque e, principalmente, para quê.

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Sobram pistas. A começar pelo personagem central, Jair Bolsonaro. Um dos seus filhos parlamentares, o senador Flavio (PL-RJ), em entrevista a VEJA, reivindica para seu pai o papel de vítima de um enredo golpista que se arrastou até o Sete de Setembro.

“Bolsonaro”, contou, “já estava saturado com uma sequência de decisões do Judiciário que a gente entendia que eram absurdas, tomadas para provocar, desgastar.”

Manifestação em Brasília com ataques a instituições
Manifestação bolsonarista em Brasília: ataques às instituições e apelos golpistas — (Jorge William/Agência O Globo)

No governo, e fora dele, predominava um clima de incitação ao golpe de Estado: “Todo mundo estava acreditando que o presidente iria causar uma ruptura institucional. Aliás, era o que muita gente queria e ele, em sua sabedoria, não o fez pelo bem do Brasil.”

Um dos sinônimos de sabedoria é sensatez, expressão certamente inadequada ao perfil de um presidente que atravessou o ano  dizendo coisas como “eu sou a Constituição” ou “da minha caneta tudo pode acontecer”. E até pior: “Sem voto impresso não vai ter eleição.”

O fato relevante, no entanto, que é um integrante da família presidencial confirmou, de viva voz, a incitação a um golpe: “Tinha conselheiro [de Bolsonaro] dizendo que o presidente não devia mais ceder, que o Supremo havia ultrapassado o limite, que acabou.”

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O senador desconversa sobre quem eram essas pessoas: “Ele conversa com muita gente. São pessoas com perfil ideológico, com dificuldade de compreender o espaço político que o presidente da República tem de dar para conseguir governar. Se o presidente fosse fazer o que essas pessoas queriam, teríamos um ditador aqui. Mas esse não é o perfil do meu pai.”

Naturalmente, ressalva o pai-presidente: “Estava se sentindo acuado e constrangido. Mas não chegou a pensar em fazer alguma coisa. Ele estava vendo que havia uma fritura, uma tentativa de encurralá-lo por parte de algumas pessoas. Aquele discurso em frente ao Congresso foi reativo. Havia uma conspiração em andamento para derrubar o governo.”

Nos outros dois prédios da praça dos Três Poderes, no Supremo e no Congresso, o entendimento é diferente.

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Ameaças ao regime proliferaram a partir do Palácio do Planalto, com o incentivo explícito de Bolsonaro desde o domingo 19 de abril do ano passado. Foi quando comandou um comício no portão do QG do Exército, em Brasília, para uma plateia que pedia “intervenção militar” em gritos, faixas e cartazes. Na sequência houve um bombardeio simulado, com fogos de artifícios, sobre o edifício do Supremo.

Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral:
Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral: “O atraso rondou nossas vidas ameaçadoramente” — (Orlando Brito/.)

A evocação golpista avançou neste ano com “ameaças de fechamento do Congresso, do STF, de descumprimento de decisões judiciais e até desfile de tanques na praça dos Três Poderes, entre outros maus momentos” — lembrou na sexta-feira o juiz Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

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O desfile de carros de combate ao lado do Congresso aconteceu numa jornada de derrota legislativa de Bolsonaro ao tentar retroceder ao voto impresso. Acabou num fiasco político.

Na perspectiva histórica, talvez, possa vir a ser tomado como marco na equidistância dos chefes militares dos apelos governistas para uma intervenção, no exercício do “poder moderador”.

Esse conceito justificou seis golpes armados desde a derrubada da monarquia, em 1889, sem contar as rebeliões ou quarteladas.

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General Augusto Heleno (GSI)
Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência — (Lézio Júnior/VEJA)

Foi sepultado na Constituição de 1988, porém generais da reserva como Walter Braga Netto (Defesa) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) seguem na sua evangelização, em tentativa de resgatar o amálgama dos interesses das Forças Armadas, instituições de Estado, com os de Jair Bolsonaro, cujo projeto de poder se perdeu no próprio desgoverno da pandemia e da crise inflacionária.

A democracia sobreviveu, e venceu em 2021. O distanciamento crítico, no tempo, permitirá contar o que aconteceu nesse ciclo de insensatez, que ainda não acabou. Há fartura de pistas em inquéritos abertos no Supremo sobre o papel de Bolsonaro, seu clã, alguns ministros e pelo menos uma dezena de parlamentares aliados.

A lupa da História é sempre útil, ajuda a entender melhor os desastres que poderiam ter sido evitados.

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