O Ministério da Saúde é a melhor tradução da administração Jair Bolsonaro: lugar onde muitos mandam, inclusive ele, e cada um faz aquilo que bem entende.
A prioridade é a política na saúde, e não a política de saúde. Na catástrofe pandêmica fez do improviso uma rotina. Perdeu a bússola e 18 000 funcionários, sem reposição.
Inovou no terraplanismo sanitário com a difusão de remédios inócuos contra a Covid-19, ao mesmo tempo que resistia às compras de vacinas atestadas, produzidas por empresas qualificadas. O resultado foi um bálsamo para fabricantes dos derivados de cloroquina e de ivermectina, cujos ganhos cresceram cerca de 1 000% no período.
Renovou o surrealismo burocrático ao admitir na sede, em Brasília, um camelódromo de vacinas inexistentes, com desfile de ambulantes dos empórios de fraudes franqueados por políticos aliados — ansiosos pelo “pixulé”, nas palavras do então ministro da barafunda, Eduardo Pazuello.
Agora, a burocracia ministerial foi além. Resolveu assumir o papel de intérprete da Constituição, do Código Penal e dos conceitos de crime, fundamentos do direito penal.
Num manual de orientação aos médicos prescreveu a criminalização do aborto como diretriz de política pública de saúde. Colocou as mulheres no alvo, a pretexto da defesa de um dogma político-religioso, lapidado na ortodoxia cristã.
No Brasil do século XXI, aborto é tema encoberto na agenda do Congresso, rarefeito nos programas dos partidos e ausente nas propostas dos candidatos. O país, no entanto, destaca-se pela desigualdade no acesso das mulheres aos serviços de saúde sexual e reprodutiva.
A Saúde decidiu elevá-lo à categoria de preceito doutrinário. Inquestionável nas palavras do atual ministro, Marcelo Queiroga: “O governo do presidente Bolsonaro defende a vida desde a sua concepção. Vou deixar claro: o nosso governo é contra o aborto. Respeitamos as exceções da lei, mas o governo do presidente Bolsonaro defende a vida de forma intransigente”. Queiroga há anos esmerilha uma tese sobre bioética, mas esqueceu de mencionar a inexistência de consenso científico sobre quando se inicia a vida humana.
“Ativistas antiaborto tentam mudar a política pública de saúde”
O Supremo Tribunal Federal está revisando a compatibilidade da legislação elaborada 82 anos atrás com a Constituição em vigor, promulgada há 34 anos na modernidade do reconhecimento dos direitos femininos.
No processo relatado pela juíza Rosa Weber, a questão central é se as razões que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 ainda se sustentam. Isso porque, alega-se, violam direitos humanos e individuais.
É importante para a comunidade médico-científica, cujo guia ético se baseia no clássico “Juramento de Hipócrates”, de 1771. No original proibiam-se a “talha”— o bisturi — ou a receita de substâncias abortivas.
Desde 1948, o “Juramento” já passou por oito lipoaspirações, centradas na preservação da saúde e do bem-estar dos pacientes.
Ao Supremo, entidades científicas relataram que o Código Penal em vigor impede que alguns princípios básicos da ética médica sejam cumpridos na assistência sanitária às mulheres.
Na origem do conflito estão dois artigos (124 e 126) cuja redação de 1940 ecoa, na prática, a ortodoxia católica, que no início do século passado qualificou o aborto como pecado punível com a excomunhão.
Nesta semana, o secretário de Atenção Primária do ministério, Raphael Câmara, evocou em audiência pública o Código de 1940 como base para a criminalização do aborto na política de saúde pública. Justificou: “Não é normal uma sociedade que mata bebês, eu não quero fazer parte dessa sociedade”.
É legítimo o ativismo político por convicções religiosas ou dogmáticas. No governo Jair Bolsonaro, porém, a militância antiaborto ultrapassou o limite do respeito à autonomia do Congresso e do Judiciário. E, pior, reforça o estigma, a avaliação moral negativa, contra as mulheres com sequelas sobre os seus direitos na vida reprodutiva.
O secretário Câmara e o ministro Queiroga deveriam encarar a vida como ela é, a partir da realidade do seu chefe, Bolsonaro. No verão de 2000, ele contou à repórter Claudia Carneiro como via a legalização do aborto:
— Tem de ser uma decisão do casal.
— O senhor já viveu tal situação?
— Já. Passei para a companheira. E a decisão dela foi manter. Está ali, ó. (Bolsonaro apontou para a foto do filho mais novo, na época com 1 ano e meio, no mural.)
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Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796