Uma fissura no núcleo do Centrão começou a ficar visível ontem, no rastro das investigações da CPI da Pandemia sobre o caso da vacina indiana Covaxin.
O negócio de R$ 1,6 bilhão (US$ 200 milhões) no Ministério da Saúde tinha corretagem privada nacional e um produto contratado a preço 1.000% maior do que havia sido anunciado seis meses antes pela própria fabricante.
Segundo a denúncia, a defesa dos interesses do grupo Precisa, intermediário brasileiro na venda da Covaxin, contava com a ajuda do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, do PP do Paraná.
Barros tem 61 anos, dos quais 33 na política. Foi protagonista de uma atribulada gestão na Prefeitura de Maringá — escapou de um conflito com servidores locais pulando pela janela do gabinete.
Na Câmara desde 1995, alinhou-se ao antigo presidente Eduardo Cunha (MDB-RJ). A partir daí, com outros líderes do Partido Progressistas, como o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), compôs o núcleo inicial do agrupamento parlamentar hoje conhecido como Centrão.
Cunha foi cassado, preso e condenado por corrupção, mas influiu na ascensão de Lira, talvez o seu mais fiel aliado, na liderança do Centrão e, em fevereiro, no comando da Câmara.
Desde que assumiu a presidência, Lira se dedica a convencer Jair Bolsonaro a retirar Barros da liderança do governo na Câmara. Está perto de conseguir o despejo do parceiro no Centrão, com o auxílio de um devoto, o deputado Luis Miranda, do DEM do Distrito Federal.
Até o final do ano passado, Miranda atuava como se fosse um escudeiro do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Quando entendeu a mudança dos ventos na eleição interna dos deputados, Miranda mudou de lado. Desde então, exala devoção a Lira.
Três meses atrás, no sábado 20 de março, Miranda foi recebido na residência presidencial com o irmão, Luis Ricardo, servidor concursado, chefe da seção de Importações da Saúde. Apresentaram a Bolsonaro um pacote de papéis em reforço das suspeitas sobre o bilionário contrato da Saúde na compra da vacina indiana Covaxin, com corretagem privada nacional.
Ontem no Senado, os irmãos Miranda apresentaram seu relato sobre irregularidades na compra da vacina indiana. O deputado contou a conversa com Bolsonaro, em março, no Palácio da Alvorada. Deixou o presidente no centro do caso investigado pela CPI da Pandemia.
Lembrou detalhes, como a resposta de Bolsonaro ao ouvi-los e olhar os papéis: “É mais um rolo desse…” O presidente sabia quem era, falou de um parlamentar, deputado e da base governista, mas Luis Miranda repetiu uma dezena de vezes que não lembrava o nome.
– Coragem, deputado… Isso aqui é uma coisa muito séria — instigou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
– E como é que eu provo se o presidente disser que eu estou mentindo, senador?
— O senhor voluntariamente assumiu o compromisso de dizer a verdade aqui, mas lhe falta coragem pra dizer —insistiu Vieira.
— Nós temos documentos — arriscou a senadora Simone Tebet (MDB-GO).
Vieira prosseguiu: — O senhor assumiu o compromisso e, agora, aqui, diante do Brasil, não tem a coragem de falar o nome. Eu falo: deputado federal Ricardo Barros.
O deputado Miranda devolveu: — E o senhor acha que eu já não tive coragem demais de estar aqui, senador? O senhor acha que nós, eu e meu irmão, aqui, nos expondo da forma que estamos nos expondo, dando chance de vocês concluírem o trabalho, já não fizemos (sic) uma grande missão por esta nação.
Com a voz embargada, continuou: — Eu vou ser perseguido. Já disseram que eu já perdi a minha relatoria da reforma tributária, que foi uma promessa do Presidente Arthur Lira para mim; já perdi todos os espaços; já perdi tudo que eu tenho; já acabaram com a minha política. O que mais vocês querem que eu faça?
Simone Tebet viu uma oportunidade: – Bom, deputado, vossa excelência, só confirma que sabe e não quer dizer…
– Eu sei o que vai acontecer comigo.
– Eu entendo a posição de vossa excelência, mas só confirma que sabe qual é o nome do deputado e nós vamos buscar…
Miranda não resistiu: – A senhora também sabe que é o Ricardo Barros que o presidente [Bolsonaro] falou.
Rápida, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) pediu confirmação. Simone Tebet, também: – O senhor confirma então que o…
Miranda interrompeu, em lágrimas: – Foi o Ricardo Barros que o presidente falou. Foi o nome Ricardo Barros.
A frase e o nome ecoaram pelo prédio do Congresso, até os ouvidos do presidente da Câmara.
Lira começou a assistir à queda de Barros, que nega tudo, do posto de líder do governo na Câmara, seu objetivo há pelo menos cinco meses.
Ao mesmo tempo, viu o devoto Miranda deixar Bolsonaro ainda mais acuado e, portanto, mais dependente do Centrão, que Lira passa a comandar na Câmara sem interferências de Barros.
Um presidente dependente, com mais de uma centena de pedidos de impeachment e às vésperas da chegada de outro, previsto para quarta-feira, é quase tudo que Lira e a bancada governista podem desejar na pré-temporada eleitoral.
Eles já dominam “a melhor parte” do orçamento, como explicou ontem o ministro da Economia, Paulo Guedes: “Como está 96% (do orçamento) carimbado, ficam só aqueles 4% ali para ser objeto de exame e alocação. Aí a base pega a melhor parte, porque a base já tem os ministros e, ao mesmo tempo, já tem também emenda de relator, orçamento impositivo… Aí, não sobra nada para os outros. E, aí, o Congresso não consegue exercer sua grande função que é ajudar a construir o orçamento público”.
A fissura no núcleo do Centrão ficou exposta, mas hoje Lira amanhece com mais poder do que tinha ontem, dentro do agrupamento partidário e, principalmente, no principal gabinete do Palácio do Planalto.
Por quanto tempo vai durar a sociedade com Bolsonaro, nem ele sabe, mas nada será como antes.