Como parecem humildes, hoje, as circunstâncias do nascimento da marca Velozes & Furiosos: estrelado por Vin Diesel e Paul Walker, que então mal e mal se qualificavam para o segundo escalão, o filme inaugural tinha enredo simples (policial se infiltra em gangues de “rachas” de Los Angeles), orçamento enxuto e a pretensão modesta de agradar àquele segmento jovem, masculino e urbano que é o consumidor clássico desse tipo de produção. Pois se saiu muito melhor do que os produtores imaginavam: a ação musculosa e criativa, valorizada pelo uso engenhoso de uma variedade de carros “tunados”, a sintonia de seu elenco multiétnico e sua mensagem sobre a pureza das amizades forjadas na refrega das ruas pegaram uma veia do público. Foi essa trinca que deu ao filme de 2001 força para se desdobrar em um punhado de continuações igualmente modestas e, depois, lá pela metade do percurso, para agigantar-se em uma franquia espetacularmente lucrativa, apoiada em iguais partes no humor, no carisma dos astros que recruta e no desatino crescente de suas cenas de ação. Dos 207 milhões de dólares de bilheteria mundial do primeiro Velozes & Furiosos, a marca escalou para 1,5 bilhão no sétimo capítulo (batendo o 1,3 bilhão de Pantera Negra, o filme de herói individual de maior sucesso da Marvel), de 2015, impulsionado pela comoção em torno da morte trágica de Paul Walker, em 2013, em um acidente de carro, e 1,2 bilhão no oitavo filme (mais do que Aquaman, o longa-metragem mais visto da DC), de 2017, que teve Charlize Theron como vilã. No total, já são mais de 5 bilhões de dólares em ingressos vendidos ao redor do mundo. Agora, ao completar a maioridade, a marca muda de marcha: em Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw (Fast & Furious Presents: Hobbs & Shaw, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país, o corpo maior do elenco é posto de lado para que se sigam os dois melhores inimigos do título, mais uma heroína fabulosamente boa de briga, em uma aventura contra um vilão de capacidades colossais — Brixton, interpretado por Idris Elba.
Deckard Shaw, o personagem do inglês Jason Statham, entrou na franquia no finalzinho do sexto filme, de 2013, como vilão, e imediatamente se estranhou com Luke Hobbs, o personagem do americano Dwayne Johnson, que fora apresentado dois anos antes, no quinto filme. No mundo de Velozes & Furiosos, porém, todas as caras bem recebidas pela plateia acabam indo parar na trincheira dos protagonistas regulares, de forma que Shaw e Hobbs, ambos egressos das agências de inteligência de suas respectivas nações, têm de trabalhar por objetivos comuns, apesar de darem nos nervos um do outro com seus estilos contrastantes — Hobbs é um brutamontes, Shaw se pretende um cavalheiro. Mas, graças aos atores que os vivem, ambos são simpáticos e divertidos, e também exímios astros de ação. Ação, claro, é o propósito maior da franquia — e se em Velozes & Furiosos 7 e 8 ela parecia ter já atingido um auge inédito de alopração, em Hobbs & Shaw ela ultrapassa até os elásticos limites da série com a direção de David Leitch, o nome mais festejado da área no momento.
Ex-dublês de ação de altíssima performance, Leitch e seu sócio, Chad Stahelski, promoveram uma revolução no jeito de coreografar esse tipo de filme em 2014, ao iniciarem a série John Wick, com Keanu Reeves. Em filmes como Atômica, Deadpool 2 e este aqui, Leitch segue os preceitos da revolução anterior, encabeçada pelo diretor Paul Greengrass na série Bourne e por Christopher Nolan na trilogia O Cavaleiro das Trevas: o máximo de stunts é feito na raça. Não só os atores são treinados à exaustão, como centenas de dublês são mobilizados e filmados de maneira direta, que valorize os elementos reais do que se vê na tela (no último dia 22, aliás, a busca insana pela ação provocou uma tragédia no set do futuro Velozes & Furiosos 9: o dublê de Vin Diesel caiu de uma altura de 9 metros e está em estado gravíssimo). Mas, se o ciclo anterior preconizava que a ação deveria ser nua e crua, o atual recomenda exagerá-la até o absurdo, de forma que o efeito final seja ora cômico, ora espantoso. No primeiro caso, tem-se a cena de Hobbs & Shaw em que Dwayne Johnson (1,93 metro de altura, 1,27 metro de tórax e 119 quilos) segura no braço uma fieira de carros e caminhões presos a um helicóptero rodopiante. No segundo caso, o do impacto, ficam as lutas duras e precisas de Idris Elba e as de Vanessa Kirby, a princesa Margaret da série The Crown, que participou também do último Missão: Impossível e vem despontando como estrela de filmes de alta octanagem.
Atriz de teatro prestigiada, Vanessa faz Hattie, irmã de Deckard Shaw e pivô da trama. Juntamente com Helen Mirren, Idris Elba e Charlize Theron, ela é exemplo de como Velozes & Furiosos conseguiu uma curiosa consagração: não só pela excelência técnica, pela diversão ou pela bilheteria, mas acima de tudo por ser uma marca que cresce ao ser repetidamente ungida pelo público, que se identifica com os personagens urbanos e multicoloridos e aprecia o nível de compromisso com que elenco e equipe se dedicam ao escapismo. Em um mundo em que até James Bond ficou um sujeito muito sério, Hobbs & Shaw e os Velozes & Furiosos que se seguirão em 2020 e 2021 são uma rara promessa de leveza.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646