É quase justiça poética que Um Lugar Silencioso: Parte II (A Quiet Place: Part II, Estados Unidos, 2020), em cartaz no país na quinta-feira 15, tenha sido o primeiro filme a levar o público americano em massa de volta aos cinemas na reabertura, no fim de maio: com estreia marcada para 19 de março do ano passado e, portanto, apanhada em cheio pela pandemia, a continuação do sucesso-surpresa de 2018 começa justamente com um retorno ao dia em que tudo mudou — um dia de sol em que as crianças jogam beisebol no parque e os adultos torcem, na paz das cidades pequenas, sem nenhuma intuição do que está por vir. O pressentimento fica por conta do espectador, que sabe bem o significado das manchetes confusas que começam a aparecer e gostaria de poder alertar o dono da mercearia que está vendo o noticiário, a freguesa que põe sem pressa as compras na sacola, o sujeito de boné na arquibancada e, evidentemente, Evelyn e Lee Abbott (Emily Blunt e John Krasinski) e seus três filhos. Mas já seria tarde demais; de um segundo para outro, o apocalipse irrompe e se alastra, sem que os personagens sequer compreendam o que estão vendo.
São doze minutos magistrais, aos quais Krasinski, retomando a direção, aplica a gramática direta desenvolvida na década de ouro do cinema de terror e ficção científica — aquela que vai do fim dos anos 60 à virada para os 80 e abrange desde blockbusters como O Exorcista e Tubarão até thrillers minimalistas como O Enigma de Andrômeda e os filmes B de John Carpenter (veja o quadro). Krasinski segue com aptidão notável o cânone desse cinema: o uso de contrapontos cuidadosamente ritmados pela edição — entre prenúncio e fato, quietude e ruído, imobilidade e fuga, e planos lentos e ação caótica que não raro “sangra” para fora do quadro.
O que Krasinski aprecia não é o terror, mas a linguagem musculosa com que aquela leva de diretores driblou as limitações de orçamento e de recursos de pós-produção com um cinema que evoca o fantástico, o estranho e o terrível quase que tão somente com o que a câmera é capaz de fazer — e as câmeras mais ágeis e leves que iam surgindo representavam uma oportunidade imperdível de romper com a sintaxe antes ditada pelo padrão mastodôntico dos equipamentos. O resultado é um cinema limpo, elegante na sua economia e altamente eficaz, que afeta o espectador não de forma passiva, com efeitos, mas por seduzi-lo com sua tensão narrativa.
Livro – Tubarão
Livro – O Enigma de Andrômeda
Dessa abertura antológica, Um Lugar Silencioso: Parte II salta para o exato ponto em que o primeiro filme terminara. Lee, o pai, está morto; Evelyn, a mãe, com um recém-nascido que ela tem de esconder em uma caixa para que os alienígenas de audição apuradíssima não ouçam o choro dele; Marcus (Noah Jupe), o filho menor, apavorado; Regan (Millicent Simmonds), a adolescente com deficiência auditiva, tentando preencher o vácuo deixado pelo pai; e a fazenda deles em chamas, obrigando-os a uma debandada. Escondidos no subterrâneo de uma fundição, eles encontram o sujeito de boné do começo — Emmett (Cillian Murphy), um velho amigo que está, agora, muito mudado. “Não existe mais ninguém que valha a pena salvar”, diz ele, tentando — em vão — expulsar os recém-chegados. O pouco que restou da humanidade, de fato, regrediu a um primitivismo predatório. Regan, porém, acha que há algo mais, o que ocasiona a separação dos personagens em dois grupos e enseja uma série de cenas montadas em paralelo — demasiadas, talvez.
Se o miolo de Parte II fica aquém da Parte I, isso não significa que falte vigor ao filme (que, aliás, recobra toda a tração no trecho final, um “gancho” eficientíssimo para uma Parte III). Krasinski não cai na tentação de aumentar a escala da ação e se cola com firmeza aos personagens. Emily Blunt, sua mulher — e sempre ótima atriz —, tem menos espaço do que mereceria. Por outro lado, Millicent Simmonds assume a dianteira com uma segurança que visivelmente impressiona o excelente Cillian Murphy, e deve impressionar outros personagens (e atores) mais no futuro. Um mundo em que o fim pode estar sempre a um passo precisa de uma pessoa como essa, em que a eloquência está não nas palavras, mas nas ações.
INIMIGOS TRAIÇOEIROS
Quatro exemplos de como o cinema dos anos 70 e 80 equivale a uma enciclopédia animada de apocalipses em escala humana
O Enigma de Andrômeda (1971)
Um microrganismo mata quem se expõe a ele, exceto um bebê e um velho alcoólatra. Num laboratório secreto, cientistas buscam o porquê, enquanto o diretor Robert Wise articula a tensão sobre silêncios e esperas
Corrida Silenciosa (1972)
Na ficção científica quase poética dirigida por Douglas Trumbull, um astronauta se condena à solidão para salvar o último Éden: a estação espacial que abriga aquilo que restou da natureza da Terra
Westworld: Onde Ninguém Tem Alma (1973)
Michael Crichton, de Jurassic Park, assinou o roteiro desta fantasia corrosiva que usa o mínimo para fazer o máximo: como um androide em pane, Yul Brynner, de preto, olhar gelado e andar medido, é a personificação de uma ameaça implacável
A Bruma Assassina (1980)
Em uma cidadezinha à beira-mar, um grupo díspar de pessoas enfrenta a ameaça misteriosa contida em um nevoeiro espesso. Várias vezes refeito, o terror do diretor John Carpenter é um “mapa da mina” para filmes como Um Lugar Silencioso
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746
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