Estava tudo certo para O Resgate do Soldado Ryan ganhar: Steven Spielberg já tinha nas mãos a estatueta de direção, e aqueles vinte minutos iniciais, que mostravam com realismo acachapante o desembarque das tropas aliadas na Normandia, em 6 de junho de 1944, eram considerados um trunfo imbatível. Mas eis que, ao ser aberto o envelope do prêmio principal, ficou tudo de ponta-cabeça: Shakespeare Apaixonado era o vencedor, e a produtora Miramax, de Harvey Weinstein, confirmava assim a sua reputação de papa-Oscar. (Aqui no Brasil, a premiação foi especialmente mal-vista; cerca de uma hora antes, Gwyneth Paltrow, a estrela em ascensão de Shakespeare Apaixonado, derrotara no páreo de melhor atriz Fernanda Montenegro, que concorria por Central do Brasil.) Foi um erro terrível (entre muitos outros) da Academia esnobar Soldado Ryan? Ou Shakespeare merecia a vitória?
Passados 21 anos do lançamento dos dois filmes, responder a essa pergunta é fácil e, ao mesmo tempo, não muito simples. Fácil porque, na revisão, não resta muita dúvida de que Soldado Ryan (disponível no NOW), à parte alguns exageros sentimentais, é cinema com mais ambição. Mas é difícil porque Shakespeare tem algumas qualidades realmente raras – particularmente o roteiro assinado por Marc Norman, cujo currículo não chega a ser vistoso, e por Tom Stoppard, que, esse sim, tem uma carreira de grande distinção como dramaturgo e como um habilíssimo adaptador de textos clássicos ou eruditos. Stoppard manja muito de Shakespeare, e manja também de ser simpático, espirituoso e acessível. Quanto mais se sabe da vida e da obra do poeta inglês dos séculos 16 e 17, mais se aproveita das brincadeiras do filme – mas, mesmo para que não as conhece, há diversão de sobra na história de Viola (Gwyneth Paltrow), a jovem de família rica que está sendo vendida em casamento a um nobre entojado (Colin Firth), mas que gostaria mesmo é de ser atriz – e que, por viver rondando os teatros, despertou os instintos amorosos de um jovem dramaturgo chamado William Shakespeare (Joseph Fiennes). Na Inglaterra de Elizabeth I (Judi Dench, que papou o Oscar de coadjuvante por 6 minutos em cena) era proibido às mulheres subir ao palco; os papéis femininos eram interpretados por rapazes imberbes. A probição só cairia com a Restauração de Charles II, nos anos 1660. Como a Viola de outra peça célebre de Shakespeare , Noite de Reis, esta aqui se veste então de homem para interpretar o que começa como uma história de piratas mas termina virando Romeu e Julieta. A encenação, depois de várias confusões, põe primeiro em enlevo e depois em lágrimas o populacho que vai conferir a estreia.
As dezenas de “cacos” shakespeareanos que Stoppard enfia no texto são uma delícia; a recriação da Londres e dos tipos da época é vívida e muito fiel; a estrutura de farsa funciona às maravilhas; e se Shakespeare Apaixonado falha feio em algum ponto, é justamente no par central. Revistas hoje, as atuações de Gwyneth Paltrow e Joseph Fiennes passam perto do amadorístico. Mas ela era uma estrela em explosão e ele estava sendo proposto como galã, e é provável que, mesmo que tivesse outros atores em mente, o diretor John Madden não teria conseguido emplacá-los. Desconfio que Madden sabia que seus protagonistas eram o calcanhar-de-aquiles da empreitada. Ao menos, ele tratou de escorá-los com um dos elencos mais robustos do cinema inglês recente; não há uma ponta sequer em que não se encontre um ator brilhante e também com muita experiência de teatro. Descontado o pormenor do casalzinho, então, Shakespeare Apaixonado fica melhor agora que atinge a maioridade e que já não faz sentido torcer por este ou aquele candidato: tanto ele como Soldado Ryan acharam seu lugar na história. Se não estão no alto do pódio do cinema, pelo menos ocupam um honroso segundo degrau.
SHAKESPEARE APAIXONADO (Shakespeare in Love) Inglaterra/Estados Unidos, 1998 Direção: John Madden Com Gwyneth Paltrow, Joseph Fiennes, Geoffrey Rush, Tom Wilkinson, Imelda Staunton, Colin Firth, Simon Callow, Martin Clunes, Judi Dench, Ben Affleck, Rupert Everett, Jim Carter, Mark Williams Onde: na Netflix |