Aos 35 minutos de Resgate (Extraction, Estados Unidos, 2020), a câmera endoidece. Pelos onze minutos seguintes, faz coisas que deixariam até Roger Deakins, o oscarizado diretor de fotografia de 1917, coçando a cabeça em perplexidade: numa cena de perseguição rodada como um dos planos-sequência mais extravagantes já concebidos, as lentes trocam múltiplas vezes de ponto de vista, entram e saem (e entram e saem de novo) de veículos em movimento, deslocam-se em frações de segundo do rosto dos personagens para um helicóptero que sobrevoa Daca, em Bangladesh, e do céu para a multidão nas ruas — fazem miséria, enfim. Da mesma forma que nos longos e elegantíssimos planos-sequência de 1917, emendas invisíveis dão a ilusão de que não há cortes na cena. Mas o fato de eles estarem lá não diminui nem o grau de dificuldade nem o de desatino da ação orquestrada por Sam Hargrave, um dublê e supervisor de stunts que agora se gradua em direção sob o patrocínio (e a produção) dos irmãos Joe e Anthony Russo, os cineastas de dois Capitão América e dos dois últimos Vingadores. Joe Russo, aliás, assina também o roteiro, e o cacife dos irmãos responde ainda pela presença de Chris Hemsworth, o Thor da Marvel, como Tyler Rake, um mercenário letal, embora entregue à bebida e à autodestruição, que aceita uma missão destinada a desandar de maneira espetacular.
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É o caso de avisar que Resgate segue uma lógica de videogame na quantidade exorbitante de mortes (mais precisamente, é adaptado de uma graphic novel), embora só combatentes sejam abatidos; para manterem a aparência ao menos de algum senso de moralidade, os Russo tomam a providência de poupar a população civil e de garantir que Tyler faça o que faz para proteger um inocente — o que não necessariamente deixará de ferir a sensibilidade de parte da plateia. Outro aviso: se é ação de cinema de verdade que o espectador deseja, daquelas que fariam valer a pena pagar o ingresso para uma sala de primeira linha, Resgate é de longe a melhor chance que ele terá de aplacar essa vontade por um bom tempo.
Os cinemas estão fechados em quase todo o mundo em razão da Covid-19, e sem data certa para reabrir — aglomerações para fins de entretenimento figuram em último lugar na lista de atividades a ser liberadas, e não se sabe como o público vai responder à ideia de fechar-se em um ambiente climatizado com centenas de outras pessoas. Em tempo de carência, Resgate se destaca pela qualidade técnica, pela escala e velocidade da ação, pelo calibre dos envolvidos e meramente por estar disponível. Ainda que os grandes estúdios se tenham precavido e empurrado bem para adiante as âncoras de bilheteria que haviam programado para o primeiro semestre (Mulan foi para o fim de julho, Viúva Negra para outubro, 007 — Sem Tempo para Morrer para novembro, Velozes & Furiosos 9 para abril do ano que vem), as novas datas são especulativas; tanto podem ser cumpridas como novamente alteradas ao sabor de uma pandemia cujo curso não é ainda claro — e que tem entre seus epicentros os dois maiores mercados consumidores de entretenimento, Estados Unidos e China.
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Resgate se destaca, também, por ser a primeira vez que a Netflix consegue de fato chegar lá; as tentativas anteriores da plataforma de oferecer em casa a experiência de um arrasa-quarteirão ficaram entre o pavoroso (como o Esquadrão 6, do diretor Michael Bay) e o mediano (Troco em Dobro, com Mark Wahlberg). Mas Sam Hargrave, que coordenou os stunts de todos os filmes dos Russo para a Marvel, segue os passos de dois outros stuntmen que passaram à direção com resultados estrondosos — Chad Stahelski e David Leitch — e se prova uma aposta altamente compensadora (além de, presume-se, ótimo aluno, tendo trabalhado com Leitch em Atômica e em Deadpool 2). Contam muito também as locações inesperadas nas populosíssimas Daca e Mumbai e o carisma de Chris Hemsworth no papel de Tyler, que vê sua blindagem emocional trincar-se na convivência com o menino que tem de resgatar — Ovi (Rudhraksh Jaiswal), filho de um narcotraficante indiano sequestrado por um rival de Bangladesh. A premissa lembra a de Sicário: Dia do Soldado, ainda que com bem menos reflexão e muito mais pancadaria — mas uma pancadaria eximiamente coreografada, e filmada com uma imaginação de dar gosto.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684
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