Para todos os efeitos, Elena Richardson (Reese Witherspoon) tem uma vida perfeita: trabalha, mas não demais, como repórter em um jornal local, tem dinheiro de sobra, mora em um casarão bem decorado em um subúrbio exclusivo de Cleveland, em Ohio. É ainda bem casada com um advogado bem-sucedido (Joshua Jackson), com quem tem quatro filhos lindos que, cada um à sua maneira, vão bem na escola — embora a mais nova, Isabelle (Megan Stott), de 14 anos, seja uma rebelde e um enigma para a mãe. Tanta perfeição é um testemunho da eficiência de Elena, que mantém o cronograma de atividades da família colado à porta da geladeira, escala horário até para o sexo conjugal e é uma dessas pessoas que não só se fixam (e cumprem) metas como também organizam incansavelmente a vida alheia. Nada escapa ao olhar de Elena — por exemplo, o carro velho estacionado numa rua da imaculada Shaker Heights, que ela imediatamente reporta à polícia. Assim, é parte por culpa que ela vai contra as próprias regras e aluga uma casa para a desconhecida Mia Warren (Kerry Washington) e sua filha adolescente, Pearl (Lexi Underwood): ao se dar conta de que eram elas as ocupantes do carro velho, Elena fica envergonhada e decide somar à reparação a oportunidade irresistível de dar um jeito na vida itinerante da mãe solteira negra e orgulhosa e da filha que está visivelmente encantada com a casa bonita e com os modos amáveis da senhoria. Como Pequenos Incêndios por Toda Parte (Little Fires Everywhere, Estados Unidos, 2020) começou com uma cena da mansão de Elena sendo consumida pelo fogo, porém, fica claro desde o primeiro dos oito episódios da minissérie disponível na Amazon Prime Video que uma das mulheres é o combustível e a outra, a faísca.
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O combustível, no caso, sem dúvida seria Reese, não só uma das atrizes mais capazes de sua geração como, possivelmente, a mais incansável delas. Dona de marca de roupas e perfumes, presente em um sem-número de ações sociais e ativíssima como produtora — ela é o estopim não só de Incêndios, produzida pelo Hulu, como também de Big Little Lies, da HBO, e de The Morning Show, da Apple, entre vários outros trabalhos nos quais às vezes não atua —, Reese, aos 44 anos, de certa forma define-se pelo papel que em Eleição, de 1999, ela tornou definitivo e paradigmático: o da estudante de 2º grau Tracy Flick, um modelo de eficiência e ambição que concorria à chefia da associação de alunos com a veemência de quem disputa uma corrida presidencial. Apesar das comparações entre Big Little Lies e Incêndios, as semelhanças não vão muito além de uma generalidade, a de que vidas aparentemente perfeitas escondem infelicidades secretas. Elena não tem nem traço da autenticidade e da franqueza da personagem de Reese no sucesso da HBO; ela é como uma Tracy Flick que, desviada da carreira, passasse a aplicar toda a fúria ao êxito da família.
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Incêndios, entretanto, é também uma amostra de como o excesso de intenções louváveis pode virar um fardo dramatúrgico. Não há insatisfação ou iniquidade postulada pelo novo feminismo que escape de ser sublinhada na adaptação do best-seller da americana Celeste Ng, inteiramente recortada de mulheres que abandonam sonhos, que põem a profissão em segundo plano, que convivem mal com a própria sexualidade, que se desgastam em busca de um ideal de perfeição, que têm mais filhos do que queriam ou não conseguem tê-los, que lutam para criá-los e não são reconhecidas. Em acréscimo ao livro, têm-se as desvantagens extras enfrentadas por mulheres negras — um tópico que poderia ser muito proveitoso não fosse vir personificado por Kerry Washington, adepta contumaz de um estilo caras e bocas de interpretação que, além de estridente, é contraproducente: Mia, que é mulher do jeito “certo”, perde todas as paradas em cena para a invariavelmente “errada” Elena. Reese, pelo jeito, sai sempre ganhando, mesmo quando não quer.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688
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