Foram quase seis anos infames de guerra, com um saldo de 80 milhões de mortos – mais de 50 milhões deles, civis. E, no entanto, poderia ter sido pior ainda. Por um triz, a II Guerra Mundial não terminou em maio de 1940, menos de um ano depois de ter começado, com um desastre estratégico no qual as forças aliadas se deixaram ser pinçadas pelos alemães até ficarem de costas para o mar, presas na praia francesa de Dunquerque, à espera das bombas que iriam aniquilá-las. Teria sido a vitória nazista, com sabe-se lá qual futuro pela frente (mas ele seria terrível, isso é certo) para a Europa e o mundo. Na hora certa, porém, o homem certo achou uma maneira de estar no lugar certo. Winston Churchill articulou a queda de seu companheiro de partido Conservador, o titubeante primeiro-ministro Neville Chamberlain, e tomou o lugar dele em 10 de maio – e conseguiu exterminar a ideia ridícula de tentar a paz com Hitler, evacuou mais de 300 mil dos homens presos em Dunquerque graças à maciça ajuda popular, e então se pôs a liderar a Inglaterra, a quase solitária adversária dos nazistas, de maneira incansável pelos cinco anos seguintes. (Lembrete: a essa altura os americanos ainda não estavam na guerra; demorariam mais um ano e meio a entrarem nela e colocarem seu poderio militar contra os nazistas). É a história dessas três semanas decisivas que o diretor Joe Wright conta em O Destino de uma Nação, um filme envolvente e fácil de assistir, que peca por algumas imprecisões e exageros mas tem uma virtude inigualável: o desempenho estrondoso de Gary Oldman, favorito disparado ao Oscar, no papel de Churchill (leia aqui a entrevista com Oldman).
Joe Wright repete aqui os acertos de seus dois melhores filmes, Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação (e, felizmente, não repete os erros de seus piores filmes, Anna Karenina e Peter Pan). É excelente na escalação de atores, sabe dar textura ao mundo que está retratando (a edição de som é sempre um ponto alto do seu trabalho), tem ritmo e fluência. Fiquei com a impressão, neste caso, que a falta de ação – na definição convencional do termo – do ótimo roteiro de Anthony McCarten deixou Wright meio nervoso, e ansioso por florear o que talvez ele considerasse uma trama meio parada. Não precisava; diretores como David Fincher (A Rede Social) e roteiristas como Aaron Sorkin (A Rede Social, Steve Jobs) vivem demonstrando que o confronto entre personagens é um tipo de ação tão excitante quanto outro. E, francamente, Wright e McCarten também não precisavam ter inventado a cena de Churchill no metrô (sem spoilers), que passa bem perto do constrangedor. O saldo final, porém, é tão positivo que esses pecadilhos ficam desculpados.
Leia aqui a resenha completa:
Custe o que Custar
Ancorado na atuação soberba de Gary Oldman no papel de Winston Churchill, O Destino de uma Nação lembra que um único homem pode fazer toda a diferença
É uma sinfonia discreta: a cascata das teclas das máquinas de escrever; o chiado de fósforos sendo riscados, e o estalido do tabaco que se acende nos charutos; a percussão das bengalas nas calçadas, e as canetas-tinteiro que arranham o papel. Ruídos que hoje quase não se ouvem mais, enfim, dão textura ao mundo que já se foi evocado em O Destino de uma Nação – o mundo in extremis de maio e junho de 1940, quando centenas de milhares de soldados ingleses, franceses e belgas se viram acuados pelos alemães, contra o mar, na praia de Dunquerque, no que poderia ter significado a aniquilação das forças aliadas e a vitória do nazismo na Europa. Se esse passado possível não se concretizou, foi em boa parte por persistência de um homem já a caminhos dos 70 anos, rotundo, enérgico e excêntrico, que acordava perto do meio-dia para um café da manhã acompanhado de uísque, e que quase nunca era visto sem um charuto entre os dedos – o primeiro-ministro Winston Churchill (1874-1965), que assumiu o comando da Inglaterra em 10 de maio daquele ano e, no prazo de três semanas, debelou a oposição cerrada às suas ideias, orquestrou a evacuação de Dunquerque, galvanizou a nação e a conduziu, de olhos abertos, para o centro do maior conflito armado da história, do qual Adolf Hitler afinal sairia derrotado em maio de 1945. “Imagine se uma bala tivesse encontrado Churchill 25 anos antes, na I Guerra Mundial; em que mundo tenebroso teríamos vivido desde 1940?”, indaga o inglês Gary Oldman, que dá vida ao primeiro-ministro no filme.
Oldman conquistou o direito de especular sobre a grandeza do personagem. Em um desempenho esplêndido, o ator magérrimo, de 59 anos, se transforma em Churchill muito mais pela potência da personalidade, pela centelha do humor e pelas suas extraordinárias habilidades dramáticas que pelo auxílio da maquiagem e do figurino. “A semelhança com um personagem é algo que pode ser forjado. A essência dele, jamais”, disse a VEJA o diretor Joe Wright, explicando que escolheu Oldman por enxergar nele a mesma energia e intensidade “quase maníacas” do célebre estadista. O Destino de uma Nação acompanha Churchill num momento que exigiu o máximo dessa sua vitalidade. Com uma carreira militar, diplomática e política em que os fracassos eram tão ou mais conhecidos que as conquistas, Churchill articulou a derrubada do primeiro-ministro Neville Chamberlain (Ronald Pickup) e sua própria ascensão. Chegou ao cargo com a reputação – inclusive dentro do próprio partido, o Conservador – de ser manipulador, errático e talvez alcoólatra. Havia anos, porém, Churchill sustentava que Adolf Hitler era um mal absoluto que nunca poderia ser dobrado ou contornado; só combatido de frente. Portanto, impusera-se a tarefa de demolir a política de apaziguamento de Neville, que considerava tão estúpida quanto débil, e substituí-la por outros imperativos – nunca ceder, nunca render-se e lutar até o fim, mesmo que isso obrigasse os ingleses a um trauma ainda pior que o da I Guerra.
Incansável, o Churchill de Oldman corteja o relutante rei George VI (Ben Mendelsohn), berra com a secretária assustada (Lily James) que esquece de datilografar em espaço 2 – ele odiava linhas coladas umas às outras –, briga com a mulher, a imperturbável Clemmie (Kristin Scott Thomas), e vocifera com seu gabinete em preparação para a ofensiva crucial contra Hitler. Não são muitas as figuras históricas que o poder engrandeceu de maneira assim indisputável, e Oldman tira partido de cada instante dessa construção do homem em líder icônico – como se Churchill fosse ele próprio um ator que, tendo finalmente conseguido o papel que sempre quis fazer, estivesse se expandindo nele até ocupá-lo por inteiro e torná-lo maior do que jamais fora antes.
Filmando com o estilo exuberante, ritmado e envolvente já demonstrado em filmes como Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação (no qual incluiu um belíssimo plano-sequência do horror em Dunquerque), Joe Wright faz de seu filme um par oportuno a Dunkirk: enquanto o épico do também inglês Christopher Nolan se ocupou do desespero dos soldados na praia francesa, O Destino de uma Nação trata de como essa derrota devastadora se tornou, primeiro, uma prova de que nunca haveria paz com Hitler – e, depois, diante da perspectiva de destruição completa da força militar britânica, de como foi usada pelo alto gabinete conservador para argumentar que já não restava saída que não o apaziguamento. Sob pressão próxima do insuportável, Churchill quase esmoreceu, e chegou a acatar a ideia de uma intermediação entre seu governo e a Alemanha nazista. Mas então os cidadãos ingleses saíram com seus barcos na travessia do Canal da Mancha, rumo ao resgate dos soldados em Dunquerque, e Churchill pôde rechaçar a facção negociadora com sua retumbância característica.
Não há dúvida de que em certas ocasiões Wright cede à tentação de edulcorar a narrativa, como na cena em que Churchill pela primeira vez na vida anda de metrô em Londres para saber o que pensam os populares da hipótese de entrar nas trevas da guerra. Mas não se pode culpar o Churchill de O Destino de uma Nação por às vezes parecer idealizado. No mundo em que o americano Donald Trump e o norte-coreano Kim Jon-un discutem pelo Twitter quem tem o botão nuclear mais avantajado, aparenta mesmo coisa de ficção um chefe de Estado munido de tal lucidez – e para quem a coragem de lutar pelos princípios vale mais que a sobrevivência política e a conveniência pessoal somadas.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 10/01/2018 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2018 |
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O DESTINO DE UMA NAÇÃO (Darkest Hour) Inglaterra, 2017 Direção: Joe Wright Com Gary Oldman, Lily James, Ronald Pickup, Kristin Scott Thomas, Stephen Dillane, Ben Mendelsohn Distribuição: Universal |