Dos anos 50 como uma fantasia technicolor aos diálogos que batem qualquer stand-up de hoje, a série The Marvelous Mrs. Maisel, da criadora de Gilmore Girls para a Amazon, entra nesta sexta-feira 18 na quarta temporada sem perder nada da efervescência.
1. Até The Marvelous Mrs. Maisel estrear na Amazon, em 2017, a atriz Rachel Brosnahan era mais conhecida por seu papel trágico em House of Cards – o de Rachel Posner, a garota de programa assassinada por Doug Stamper (Michael Kelly), o assessor e sinistro faz-tudo de Frank Underwood. Então com 27 anos, Rachel Brosnahan nunca havia feito comédia – nem sequer era de contar piada para os amigos. Pois arrebentou no teste para a série e desde a primeira cena do primeiro episódio ela é um estrondo: fazendo um número de stand-up no próprio casamento, vestida de noiva, a esfuziante e efervescente Midge Maisel é uma dessas personagens que ganham o espectador de cara, e para sempre. A maneira como a série é filmada acompanha par e passo a energia inesgotável da protagonista: cada episódio é uma balé da câmera, tão fluido quanto vertiginoso.
2. Midge é um furacão. Se ela por acaso sabe o que é desânimo, é só de ouvir falar, porque nunca topou com ele de frente. E, no começo da série, ela é também uma perfeita dona de casa judia do Upper West Side dos anos 50: espera o marido, Joel (Michael Zegen), dormir para sair da cama e tirar a maquiagem, e levanta antes dele para se maquiar de novo, enfiar-se mais uma vez nas cobertas e fingir que acorda assim, linda, naturalmente. Faz uma carne assada que é uma beleza, e usa-a como suborno para conseguir os melhores horários para Joel se apresentar no Gaslight, um clube de comédia para amadores no Village nova-iorquino, então um antro de boêmia. Midge é tão organizada que anota a quantidade de risadas obtidas por cada uma das piadas de Joel, para ele afinar seu número. Mas Joel é um comediante medíocre. Midge é que é o verdadeiro talento. O que ela só vai descobrir quando…
3. …Joel larga Midge pela secretária com QI de ostra e ela, furiosa, magoada e bêbada, se manda de camisola para o Gaslight, sobe no palco e transforma sua desventura em um número de stand-up antológico (já vi e revi a cena uma dúzia de vezes; é genial) e escandaloso, que põe a plateia abaixo e termina com ela no xadrez da delegacia, um novo amigo – o legendário e revolucionário Lenny Bruce, aqui interpretado por Luke Kirby – e uma nova carreira pela frente. Midge é uma personagem ficcional, mas seu modelo são desbravadoras como Joan Rivers e Anne Meara (a mãe de Ben Stiller), que enfrentaram o chauvinismo que até hoje domina esse meio para fazer das próprias desgraças e humilhações uma comédia matadora.
4. Amy Sherman-Palladino, a criadora de Gilmore Girls e de The Marvelous Mrs. Maisel, sabe do que está falando: seu pai fazia stand-up no chamado “Cinturão do Borscht”, as estâncias de verão das montanhas Catskills frequentadas pela comunidade judaica nova-iorquina até os anos 60. Lenny Bruce, entre outros comediantes, era amigo da família, e Amy conhece em primeira mão o misto de pavor e excitação com que alguém se expõe no palco a cada número de stand-up – um tipo de comédia implacável, em que o humorista está sempre a uma piada apenas de arrasar ou de implodir.
5. Os números de Midge são bárbaros, mas o stand-up corre solto em todas as cenas: os diálogos são um ra-ta-tá impagável em que atores excelentes como Tony Shalhoub (o pai de Midge), Marin Hinkle (a mãe) e Alex Borstein (no papel de Susie, a gerente duranga do Gaslight que vê em Midge a chance de virar empresária) duelam uns com os outros em uma perfeição de one-liners e de timig cômico nunca vista em tamanha concentração em uma única série. Amy Sherman-Palladino faz questão de aproveitar ao máximo cada um dos atores do seu elenco excelente e deixar seus personagens crescerem. Alex é a outra grande revelação da série (a primeira, claro, é a própria Rachel Brosnahan), e os veteranos Shalhoub e Marin invariavelmente arrasam quando estão em cena. A temporada que os dois passam em Paris, onde se descobrem sofisticados e boêmios, é um dos pontos altos.
6. Não só a recriação da Nova York bem de vida e do Village boêmio dos anos 50 é deliciosa – uma combinação de fidelidade histórica com fantasia technicolor, recheada de figurinos sensacionais –, como Mrs. Maisel é também, no meio de toda a diversão, um comentário muito astuto. Na segunda temporada, em que Midge vai para as Catskills com os pais e os filhos, Amy Sherman-Palladino explora o sufoco (e os eventuais confortos) de viver em uma comunidade em que tudo se sabe e tudo se fofoca – não só do ponto de vista de Midge, tida como coitada e/ou libertina por estar divorciada, mas também da perspectiva de Benjamin (o Zachary Levi de Shazam!, ótimo), o médico partidão que não aguenta mais o assédio de todas as mães que querem casar suas filhas com ele. Na terceira temporada, em que Midge sai em turnê com um cantor negro de muito sucesso e secretamente gay, Amy põe em evidência a crueldade com que raça e sexualidade eram – e são ainda – tratados.
7. O argumento decisivo: com a estreia da quarta temporada de Mrs. Maisel, mais sete horas perfeitas se juntam às 23 já disponíveis, em uma das melhores maratonas oferecidas hoje por qualquer plataforma.