Se você não viu a primeira temporada de Narcos: México – porque acha que o assunto não lhe interessa, ou porque viu as três temporadas do Narcos passado na Colômbia e acha que já está de bom tamanho, ou por qualquer outro motivo –, considere o seguinte: na qualidade da dramaturgia, na excelência do elenco e no estrago que ela faz no seu coração, não há acréscimo recente no catálogo da Netflix que se compare a esta série. A segunda temporada, que estreou há apenas uma semana, é um colosso; minha dúvida é se eu devorei os dez episódios, ou se eles me devoraram. Diferentemente do Narcos colombiano, que girou quase todo em torno da figura tão assustadora quanto pitoresca de Pablo Escobar, o Narcos mexicano funciona mais como um mecanismo de relógio, em que uma infinidade de peças tem de girar ao mesmo tempo – ou não, e aí é que está o problema. Há, claro, uma engrenagem central: o sutil, calculista e monstruosamente ambicioso Miguel Ángel Félix Gallardo, que Diego Luna interpreta de maneira soberba, quase que só com sugestões e sombreados. Félix já foi definido por um estudioso dos problemas da fronteira México-Estados Unidos como “o Bill Gates do tráfico” – o sujeito que reformatou o produto, o consumo e o mercado. O que dá prazer a ele é ser o jogador que vê mais longe e nunca deixa que os adversários antecipem as suas próprias jogadas. É um personagem difícil – mas, nesta segunda temporada, que começa com Félix já consolidado como o senhor do tráfico mexicano, com todos os feudos regionais submetidos à sua autoridade (ele diz que são todos “sócios”, mas a esta altura o pessoal só finge que acredita, por puro medo), um outro personagem difícil se apresenta: o agente da DEA, a agência americana antidrogas, Walt Breslin, que o infalível Scoot McNairy interpreta com um misto complicado de empatia e teimosia, e com uma arrogância discreta que lembra muito a do próprio Félix. Walt Breslin também finge (para si mesmo, inclusive) que seu comando do pequeno grupo de agentes americanos e mexicanos que recrutou é igualitário. Balela: ele vive tomando decisões autocráticas. Como Félix, ele é um lobo solitário, que só convive com a alcateia por conveniência. Toda a segunda temporada é um duelo entre Félix e Walt – mas um duelo à distância, já que só em uma cena eles vão ficar cara a cara. E, caramba, que cena magnífica. Dessa vou lembrar por muito tempo.
(Leia aqui sobre a primeira temporada de Narcos: México)
O mais interessante é que nessa espécie de Guerra Fria travada entre Félix e Walt sobre bastante espaço para que os roteiristas e diretores – entre os quais os excelentes Andrés Baiz e Amat Escalante – desenvolvam em detalhe, com cuidado e com paixão, um bom número de personagens fascinantes. Assim como o sensacional Don Neto (Joaquin Cosío) da primeira temporada, eles de primeira parecem todos a mesma coisa: um bando de homens (e algumas mulheres) feios, sujos e malvados. Mas, nas mãos de atores superlativos, aos poucos eles se vão desenhando em detalhes que só posso definir como cativantes: Amado (José María Yazpik), o eficiente piloto que veio comendo pelas beiradas desde a temporada anterior e que aqui vai se tornando indispensável a Félix; o hipnótico Pablo Acosta (Gerardo Taracena, um ator formidável), que é ao mesmo tempo um bandido à antiga e uma vítima de angústias existenciais; e, entre muitos outros, um certo jovem semi-analfabeto pelo qual ninguém dá nada, com cara de matuto e uma franjinha redonda de matar, chamado El Chapo (Alejandro Edda). Prepare-se para desenvolver sentimentos por todos eles e, em certas ocasiões, até desculpá-los ou mesmo admirá-los. Em qualquer de suas edições, porém, Narcos, sempre volta à mesma questão – não importa o quanto se compreenda por que essas pessoas são como são; o que resta, para além de qualquer dúvida, é o que elas fazem, e o que elas fazem é hediondo.
Narcos: México é construído como um trabalho de paciência, em que os elementos vão se acumulando da mesma forma que a tensão se acumula em uma falha geológica até, um dia, ser liberada na forma de terremoto. Desde o início desta temporada, sentem-se pequenos tremores. Do oitavo episódio em diante, porém, a terra chacoalha feio, e então se reacomoda de novo, de maneira diferente. Mas – e isso é o mais triste – a terra é sempre a mesma, com a mesma corrupção governamental e policial acachapante, a desigualdade e a ignorância que tornam mamão com açúcar recrutar gente para o crime, os mesmos vícios patrimonialistas que vêm de séculos e continuam inalterados (políticos e chefes de tráfico, aliás, são indistinguíveis nas motivações e nos métodos), a mesma ineficiência estatal e o mesmo empreendedorismo ilegal. Tudo muda, tudo continua igual – lá e cá.