Trinta e sete anos depois de seu lançamento, a adaptação de David Lynch para Duna, o clássico de 1965 do escritor americano Frank Herbert, ainda provoca espanto — e não no bom sentido. Sempre um excêntrico, mas em qualquer outro caso um cineasta notável, no filme de 1984 Lynch viajou no exagero, no grotesco e na incoerência, e cunhou um desastre tão retumbante (ainda que cheio de personalidade) que se tornou, ele próprio, um clássico entre os desastres. Daí a apreensão que cercou a nova adaptação do livro — o que torna assistir ao Duna (Dune, Estados Unidos, 2021) do canadense Denis Villeneuve, em cartaz a partir da quinta-feira 21, muito mais que um alívio. Essa, sim, é a viagem que um aficionado esperaria: aquela que transcende a sua imaginação, assombra (agora no melhor sentido possível) e conjura outros mundos com tal vividez que vê-los é estar neles.
Mundos como Arrakis, um planeta de areias infinitas que escondem vermes imensos, capazes de engolir plataformas de refinação inteiras, com as quais disputam a riqueza desse deserto — a “especiaria”, substância que aguça a percepção de forma a permitir a navegação estelar. Sem a especiaria não há circulação entre mundos nem comércio; nada tem tanto valor. Por ela, há oito décadas o barão Harkonnen (Stellan Skarsgard) persegue e tenta exterminar os Fremen, a população indígena de Arrakis. Mas, agora, a exploração acaba de passar por decreto imperial à linhagem Atreides. O duque Leto Atreides (Oscar Isaac) suspeita que as razões por trás da oferta sejam sinistras, mas não pode recusá-la. Sua mulher, Jessica (Rebecca Ferguson), acha que o destino está se cumprindo: educada em uma seita mística, ela crê que seu filho, Paul (Timothée Chalamet), seja a figura central de um vaticínio, e o instruiu nas estranhas artes da sua ordem.
Não há surpresa em dizer que a chegada dos Atreides a Arrakis será uma calamidade: os sonhos proféticos de Paul com uma jovem Fremen (Zendaya) de olhos inteiros azuis — efeito da especiaria — e sua fuga dos Harkonnen rumo ao deserto profundo é que deflagram o enredo. E esse era o primeiro e maior desafio de Duna, a trama imensa e intrincada de Frank Herbert. Mas Villeneuve o vence sem esforço aparente e com brilhantismo, atendendo às necessidades expositivas em algumas cenas-chave (nunca se viu tal tensão no gesto de pedir um copo de água à mesa do café da manhã) e deixando que a imagem cuide do resto. Colocados entre as paisagens e estruturas gigantescas, austeríssimas, os seres humanos não são mais do que insignificantes. E, no entanto, é às ambições e disputas deles que elas devem sua existência. A tensão entre a vastidão do universo e a fragilidade e a imperiosidade humanas, os círculos perpétuos de poder, opressão e revolta, e a imprevisibilidade daquilo que há de intangível no interior de uma pessoa — os sonhos, o instinto, a crença — são a matéria de que Herbert fez Duna, e toda ela está na tela, viva.
Mesmo entre outros cineastas que hoje trabalham nessa proporção operística, Villeneuve ocupa um lugar só seu na concepção das imagens. Seja mergulhando no narcotráfico, como em Sicário, retomando um futuro ficcional, como em Blade Runner 2049, ou ainda imergindo em um presente paralisado pela intrusão de outras inteligências, como em A Chegada, é na imagem que reside a parte crucial do que ele tem a dizer: no seu extraordinário senso de escala e de volume, na sua fusão do colossal com o minimalista, na maneira penetrante com que sua câmera se aproxima dos atores — todos aqui excelentes nos seus papéis — e no instinto notável com que ele encomenda trilhas sonoras que ora ampliam as imagens, ora discordam delas. Seu Duna é uma espécie de apogeu. Mas — e esse é um “mas” e tanto — está incompleto: só a primeira metade do livro é coberta aqui. O desfecho é apropriadamente indefinível, poético — e frustrante, dado que a Parte II não passa ainda de um plano que talvez se materialize, talvez não. Em se tratando de Duna, nunca se podem ter só boas notícias.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760
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