O café-da-manhã é comprovadamente a refeição mais importante do dia, e os zumbis de Kingdom sabem disso: quando o Sol se põe, eles já acordam à toda, correndo atrás de tudo que é vivo e possa ser mastigado. Durante o dia, ficam em estado latente. São facilmente tomados por mortos comuns – isso se fosse comum os mortos se apresentarem em tamanha quantidade e em tal estado de mutilação. Mas essa peculiaridade no seu, digamos assim, ciclo de vida é o que permitiu que o contágio se espalhasse com velocidade incontrolável. Quando os magistrados de uma pequena cidade puseram-se a inspecionar os corpos retirados do hospital da doutora Seobi (Doona Bae, de Sense8), sem acreditar na história tresloucada que ela lhes contava, mal houve um instante para fugir enquanto os cadáveres despertavam, contorcendo-se em posições inaturais, com as juntas estalando em sons repulsivos. A origem dessa infecção, porém, está bem longe dali. Está na capital, onde o rei morreu e foi trazido de volta à vida pelas ministrações estranhas do médico que é o mentor de Seobi. O rei-fera resultante dessa ressurreição matou um jovem enfermeiro; o corpo do enfermeiro foi levado de volta consigo pelo médico; e ali, no hospital interiorano em que ele trabalhava, sua carne serviu a um fim hediondo. Daí para a frente, o caos.
Kingdom é uma criação do diretor Seong-hun Kim, dos excelentes Um Dia Difícil e O Túnel, e da roteirista Eun-hee Kim (até onde pude apurar, é mera coincidência eles terem o mesmo sobrenome). Lendo sobre os séculos 15 e 16 da dinastia Joseon, quando disputas de poder instauraram o caos no reino e causaram fome epidêmica entre a população, ela topou com uma passagem sobre um surto de milhares de mortes inexplicáveis – e veio-lhe a ideia dos zumbis, essa metáfora da podridão política e da deterioração social que (para mim, ao menos) nunca se esgota. O rei foi ressuscitado para legitimar como sucessor o bebê que está na barriga de sua segunda mulher, permitindo a uma facção da corte botar de escanteio o já adulto príncipe-herdeiro, Chang (Ji-hoon Ju), e instituir uma tirania. O príncipe, porém, não está disposto a ceder assim tão fácil. Acompanhado de um guarda que lhe permanece fiel, vai procurar o médico do interior em busca de explicações. E, sem querer, põe-se no centro de acontecimentos que vão obrigá-lo a testar sua fibra e descobrir se ela é suficiente para que ele desempenhe o papel para o qual foi preparado. Chang, em suma, terá de abdicar do privilégio que sempre o cercou para encontrar dentro de si a realeza verdadeira – a honra, o dever de proteger a nação e, sobretudo, o entendimento de que cada uma das pessoas mais insignificantes dessa nação é o que dá sentido a ela.
Como poucas nações têm uma história recente tão conturbada quanto a da Coreia, Kingdom ganha uma grande variedade de interpretações. Ela alude à ocupação japonesa do início do século 20 até a II Guerra Mundial e à guerra civil de três anos que, em 1953, separou o país nas Coreias do Sul e do Norte, apartou famílias para sempre e submeteu os coreanos do Norte a uma ditadura crudelíssima, que mata de fome seus cidadãos de fome como se eles nada valessem. Mas não só: a série comenta os escândalos de corrupção que levaram à destituição, em 2016, e à prisão, em 2018, da presidente Geun-hye Park, que vinha sendo influenciada por uma assessora cavilosa – uma verdadeira eminência parda. E, como em quase todo filme ou série coreano que eu já tenha visto (e vejo-os em quantidade), no meio de tudo fica bem viva a angústia pela presença militar americana ostensiva, fruto de um tratado de defesa mútua que, cada vez mais, tem sido motivo de descontentamento interno.
Mas pondere esses aspectos de Kingdom ao final de cada episódio: enquanto eles estão rolando, deixe-se levar pela maneira extraordinária como o diretor Seong-hun Kim conduz a trama. O cinema sul-coreano é especialista no que eu chamo de curvas fechadas: mudar do pastelão para o horror, ou o drama, ou a ação, numa fração de segundo, sem nunca perder o controle do volante nem a elegância da manobra. Kim, além disso, filma magnificamente, em imagens e composições lindíssimas que prestam muita homenagem ao cinema japonês, sobretudo os épicos de Akira Kurosawa e os filmes de samurai. (Só os figurinos, aliás, já valeriam a pena: nunca vi tantos modelos estranhos de chapéu na vida.) É eletrizante e envolvente – e, para quem ainda não foi apresentado ao sabor particular do trabalho dos cineastas sul-coreanos, uma excelente introdução à matéria.