Primeiro, desejo que não haja apocalipse nenhum. E, se houvesse, gostaria de salvar todos os filmes já feitos – os bons e os ruins, os que sempre são lembrados e os que já foram esquecidos. Mas fazer uma seleção como essa é um exercício revigorante: se você só pudesse contar com um acervo muito pequeno, quais seriam os filmes essenciais para sustentar a sua imaginação, alimentar a sua necessidade de ouvir histórias e informar as gerações seguintes sobre essa arte que hoje você aprecia de maneira tão corriqueira, a qualquer dia, a qualquer hora e em qualquer lugar?
Ou seja: esta não é uma lista dos melhores filmes de todos os tempos, como aquela que o American Film Institute faz às vezes. Não é uma lista de clássicos. E também não é necessariamente uma lista dos filmes a que é mais prazeroso assistir. É a lista dos filmes que hoje, neste momento, eu correria para preservar – porque eles resumem algo de fundamental, porque a partir deles eu poderia me lembrar de outros filmes de que gosto, porque acho que seria difícil reinventar o cinema sem aprender o que eles têm a ensinar. E porque eles estão todos, sim, entre os meus preferidos. O 40 é uma brincadeirinha apocalíptica, já que, na Bíblia, quarenta é um número simbólico do ciclo de fim e recomeço, e é o tempo das decisões maduras. E porque escolher só dez filmes me faria arrancar os cabelos.
1. Era Uma Vez no Oeste
Nada se mexe no deserto, a não ser a poeira; a placa da estação de trem balança e range; uma mosca pousa no nariz do homem feio, ele a espanta, ela pousa de novo: uma das sequências de abertura mais ousadas (no ritmo e na duração) já feitas, para dar a partida em um filme espetacular de ponta a ponta. Tendo inventado o faroeste-spaghetti na sua Trilogia do Homem Sem Nome, o italiano Sergio Leone dobrou todas as apostas neste western épico – começando por, pela primeira vez na história, colocar Henry Fonda no papel de vilão. E que vilão.
O legado: Já vi Era Uma Vez no Oeste bem umas doze ou quatorze vezes, e a cada uma delas aprendo mais (e muito). Se for para recomeçar o cinema do zero, esta é a aula mais completa desta lista. Vá filmar assim lá longe, seu Leone.
2. O Poderoso Chefão I e II
O certo é ver os dois filmes na sequência e pensar neles como um só – mais precisamente, como o exemplo perfeito e irretocável do classicismo narrativo americano. Não fosse Al Pacino e James Caan estarem com cara de garotos (e Marlon Brando e John Cazale estarem vivos), seria impossível precisar em que década Francis Ford Coppola fez esta saga sobre o império mafioso construído na América pelo imigrante siciliano Vito Corleone e a relutância – e competência – com que o filho Michael assume a herança paterna. Não há um adereço ou movimento de câmera que pareça datado, nem uma emoção sequer que não seja essencial da natureza humana. É operístico, grandioso, lindo, e ainda assim íntimo.
O legado: A América do século XX, a dos imigrantes, está toda aqui. Além do mais, qual o sentido de viver em um mundo em que ninguém saiba quem é Luca Brasi, ou o que significa fazer uma oferta irrecusável?
3. 2001 – Uma Odisseia no Espaço
É claro que eu gostaria de salvar do apocalipse todos os filmes de Stanley Kubrick, de Glória Feita de Sangue a Laranja Mecânica e Barry Lyndon. Mas, se for o caso de escolher apenas um, terá de ser o filme que criou a nossa mais persistente e duradoura visão do futuro. Kubrick foi ao âmago da ficção científica: não é pela tecnologia ou o pelo porvir que ela fascina, mas sim por responder ao impulso primordial do ser humano de se aventurar no desconhecido e moldar o seu mundo.
O legado: Para ter uma ideia do que acontece quando é sublime o encontro entre um tema e um cineasta.
4. O Leopardo
O príncipe Fabrizio de Salina e sua família chegam ao seu palácio de verão, no vilarejo de Donnafugata, com festa, banda e missa. Emparedados, um a um, pelos braços altos das poltronas da igreja e esbranquiçados pela poeira da viagem, Fabrizio, sua mulher e seus filhos mais parecem, porém, cadáveres num velório – o que é uma aproximação razoável com a realidade: é disso que trata O Leopardo, da passagem de nobres como Salina a uma dimensão fantasmagórica. O diretor Luchino Visconti, o “conde vermelho” – por ser muito aristocrático e rico e também comunista –, era mesmo um especialista em reunir contradições. Casa opulência com restrição, e decreta o fim de uma classe mas salva seu principal representante pela cultura, o vigor, a inteligência.
O legado: Sem ciência do passado não há como criar um futuro – e O Leopardo é o filme certo para ilustrar essa ideia. Além disso, tem Claudia Cardinale, linda e fresca, dançando em um baile com Burt Lancaster. Imagino que o mundo sempre vá precisar de beleza como essa.
5. Curtindo a Vida Adoidado
O melhor filme adolescente de todos os tempos, escrito e dirigido por John Hughes, o sujeito que melhor entendeu a adolescência na história da humanidade.
O legado: 103 minutos de puro júbilo. Isso há de valer ouro.
6. Alien – O Oitavo Passageiro
Está com pressa? Vá ver outro filme. Porque, neste aqui, Ridley Scott ensina que, quanto mais um diretor segura o ritmo, mais torturantes são o suspense e o terror. Alien foi imitado literalmente centenas de vezes, e em nenhum delas chegou-se sequer perto do artigo original.
O legado: Um punhado de cenas que vão queimar sua retina e ficar impressas no seu cérebro.
7. Os Bons Companheiros
Ray Liotta é Henry Hill, o garoto irlandês que desde pequeno sonha ser parte da máfia italiana que domina a vizinhança em que ele mora; o sonho de Henry se realiza – e ele é meio delírio, meio pesadelo, uma espécie de embriaguez de que o espectador compartilha junto com os personagens. Um dos mais intensos e brilhantes filme de máfia já feitos.
O legado: O melhor exemplo possível para os cineastas do futuro de a) como se monta um filme e b) como usar músicas conhecidas na trilha sonora.
8. Os Caçadores da Arca Perdida
Todas as matinês do mundo em uma só.
O legado: Uma junção dos itens 3 e 5 – um encontro sublime entre um cineasta e um tema, e 115 minutos de puro júbilo.
9. Janela Indiscreta
James Stewart, o fotógrafo de perna quebrada, fica espiando os vizinhos pela janela; Grace Kelly, vaporosa, entra na brincadeira; eles veem o que não deviam ver. Alfred Hitchcock ensina como ser perverso e safado sem ser vulgar. Ou melhor: sem parecer vulgar.
O legado: Uma dúvida crudelíssima: qual entre tantas obras-primas de Alfred Hitchcock eu deveria salvar? Um Corpo que Cai? Psicose? Intriga Internacional? Fico com esta aqui porque ela junta duas qualidades cintilantes do diretor – o suspense, é lógico, mas também o humor.
10. A Separação
Começa com um casal argumentando as razões para seu divórcio diante de um juiz – e vai se alargando em círculos cada vez maiores e mais explosivos, até o espectador sentir que está com o coração na boca. O drama feroz do diretor Asghar Farhadi é uma síntese da excelência que o cinema iraniano atingiu em duas décadas, apesar da repressão social, da censura estatal e da constrição da lei religiosa.
O legado: Cinema superlativo, que fala às mais urgentes questões pessoais e culturais, desenvolvido sobre um roteiro positivamente brilhante. Sempre terá muito o que ensinar.
11. Aquele que Sabe Viver
Vittorio Gassman é um fanfarrão, Jean-Louis Trintignant é um tímido; num domingo de sol, saindo de Roma, eles vão percorrer juntos, em um carrinho conversível, a estrada que leva da comédia à tragédia. Para mim, esta obra-prima do diretor Dino Risi é o mais magnífico de todos os filmes da era de ouro do cinema italiano, nos anos 50 e 60.
O legado: Um flagrante da paisagem interior humana tão agudo e pungente que. quase sempre, é transformador para quem o vê.
12. Kes
O filme de estreia de Ken Loach tem lugar em uma cidade industrial do norte da Inglaterra, em 1969 – mas, tamanha é a indiferença à infância exposta na história, que ela poderia se passar um século antes e ter sido tirada de um dos tristíssimos romances de Charles Dickens. Billy, um menino magro e sujinho de seus 12 ou 13 anos, é maltratado pela mãe, pelo irmão, pelos professores. Desolado, ele encontra um foco para sua existência esquálida: tira do ninho um pequeno gavião e passa a treiná-lo, segundo as instruções que lê, com muita dificuldade, em um livro sobre falcoaria. Um filme pessimista e de cortar o coração – mas belíssimo.
O legado: O mais belo casamento entre lirismo e um naturalismo vivo, sem retoques nem sentimentalismo, que só aumenta a sua potência emocional. Um lembrete oportuno, também, de como a crueldade pode ser casual.
13. Moonrise Kingdom
Suzy e Sam, duas crianças que se sentem incompreendidas, se conhecem e se reconhecem como almas gêmeas. Munidos de sacos de dormir, víveres, um gato, uma vitrolinha e discos de Françoise Hardy, fogem para estabelecer um reino breve mas feliz em uma ilha, numa pequena baía. A casa de bonecas do diretor Wes Anderson transborda e reverbera de emoção, até se tornar um cenário libertador.
O legado: Primeiro, um dos mais curiosos universos formais já criados por um cineasta. Depois, uma reflexão belíssima, muito sentida, sobre as coisas que se vão deixando pelo caminho entre a infância e a vida adulta.
14. Kagemusha – A Sombra de um Samurai
É uma aflição ter de escolher UM (01!!!) filme de Akira Kurosawa. Vou de Kagemusha porque, primeiro, ele um espetáculo. Depois, porque a interpretação do Tatsuya Nakadai no papel-título é soberba. Finalmente, porque, em muitos sentidos, Kagemusha funciona como síntese da obra do Kurosawa: é visualmente ambiciosíssimo, operístico na escala e, no entanto, é talvez a mais aguda de todas as reflexões dele sobre o que faz uma pessoa ser o que é – se o que ela faz, se o que ela acredita ser, se o que ela se torna.
O legado: É incalculável. Metade do que o mundo sabe sobre fazer cinema foi aprendido diretamente de Kurosawa – a começar pelo filme de ação, que ele praticamente inventou do zero com Os Sete Samurais.
15. Os Imperdoáveis
Clint Eastwood põe na balança nove décadas de westerns e vários séculos de violência. Sai carregando o peso do mundo nos ombros.
O legado: Um dos maiores ícones do século 20, Clint não poderia deixar de estar nesta lista – como ator, como o tremendo cineasta que foi se tornando e como um dos mais dedicados revisores da cultura que o cinema americano (com sua ajuda) propagou.
16. A Doce Vida
Na Roma do pós-guerra, enquanto todos buscam o prazer, Marcello Mastroianni se perde no vazio existencial magnificamente expresso no preto-e-branco de Federico Fellini.
O legado: Uma das mais sedutoras, envolventes e melancólicas sequências de fotogramas já concebidas por um ser humano.
17. Rastros de Ódio
Cinema sem os filmes de John Ford? Isso não existe. E John Ford sem John Wayne? Impossível. Em algum momento do futuro pós-apocalíptico eu teria uma crise aguda de abstinência se não pudesse ouvir a dicção peculiaríssima de Wayne ou vê-lo andando com aquela graciosidade animal inesperada em um sujeito tão grandão e durão. Então vamos escolher a síntese mais rica dessa parceria: o amargo e desesperado Rastros de Ódio, o ápice dos faroestes crepusculares.
O legado: Não há como a humanidade seguir adiante sem conhecer o mais belo frame da história do cinema – Wayne emoldurado por uma porta e recortado contra a paisagem a perder de vista do Oeste.
18. O Exorcista
Max von Sydow olha para a estátua antiquíssima de um demônio em algum lugar da Mesopotâmia, o demônio parece olhar de volta para ele, e é tanto medo que dá até tontura. O diretor William Friedkin acerta no coração do horror na sua evocação do mal absoluto, com maiúscula.
O legado: O maior terror já feito. Mesmo. Sem discussão.
19. O Galante Mr. Deeds
Frank Capra + Gary Cooper. Não se convenceu? Jura? Então aí vai: Cooper é um interiorano ingênuo que herda uma fortuna; ele vai para a cidade grande e todos tentam fazê-lo de bobo – a começar por Jean Arthur, uma repórter esperta que posa de tolinha. Adivinhe quem ri por último? (Eu, que sempre termino com um sorriso beatífico grudado no rosto.)
O legado: Quando a barra do apocalipse estiver pesando demais, o mundo sincero e otimista de Capra vai ser um santo remédio.
20. Perseguidor Implacável
“Dirty” Harry Callahan é um herói, ou é um anti-herói? Prova da complexidade do policial icônico vivido por Clint Eastwood (e dirigido por Don Siegel) é que até hoje essa é uma questão que está longe de ser decidida. Harry enfia o revólver na cabeça de um ladrão e sofisma com ele: já disparou todas as balas, ou ainda falta uma? Harry é um anjo vingador, e encarna algo de essencial em Eastwood: a ideia de que um homem tem de prestar contas sobretudo às suas próprias convicções.
O legado: O melhor e mais complicado retrato da passagem dos sonhadores anos 60 para a desencantada década de 70. E, de quebra, um filme policial que continua sendo imitado – palidamente – até hoje, sem parar.
21. O Planeta dos Macacos
Charlton Heston está láááááá no fim da minha lista de atores preferidos, mas aqui ele é o homem certo no lugar certo: quem mais iria esmurrar a areia da praia e gritar “Malditos sejam!” com aquela convicção toda na cena final mais embasbacante do cinema? Só para constar, tudo, desde o primeiro até o último minuto, é um choque, e a trilha fabulosa de Jerry Goldsmith faz você sentir que o seu coração vai pular do peito a qualquer momento.
O legado: Já sentiu alguma vez que a espécie humana flerta de perto demais com a sua própria destruição? Pois é. Ver o filme de Franklin J. Schaffner depois do apocalipse deve ser um baque.
22. RoboCop
O holandês Verhoeven é o cineasta mais confrontador, afrontador, louco, desajuizado e sem vergonha a jamais ter recebido financiamento de um estúdio americano. O resultado é isso aí: uma sátira sulfúrica, uma ficção científica nota 10, uma concepção visual matadora (com amputações grotescas e gente derretendo em ácido e, ao mesmo tempo, aquela delicadeza mecânica dos movimentos de Paul Weller).
O legado: Um espelho para mostrar, em detalhe, o barbarismo de que somos capazes.
23. Monty Python e o Cálice Sagrado
O Rei Arthur, andorinhas africanas, monges, cocos e um coelhinho assassino se combinam de forma hilariante. Mas não delirante: um dos efeitos das comédias do Monty Python é que elas vão direto ao ponto e demolem todos os pilares da civilização. Depois, você nunca mais consegue levar a sério nenhum outro filme sobre um tema parecido.
O legado: Fiquei com o coração dividido: deveria escolher O Cálice Sagrado ou A Vida de Brian? Afinal, demolição por demolição, talvez a da civilização judaico-cristã fosse material mais rico que a da Europa medieval. Mas fiquei com Cálice por uma razão simples: nunca ri tanto na minha vida.
24. Batman – O Cavaleiro das Trevas
Heath Ledger é o Coringa. O caos reina. Christopher Nolan conjura um dos paineis mais devastadores já feitos sobre a aniquilação e a ruína que podem ir na alma de um homem.
O legado: O existencialismo ganha uma forma para os novos tempos, e se traduz para uma nova geração.
25. 007– Operação Skyfall
E por falar em novos tempos: Daniel Craig se instala de vez em um personagem que, acreditava-se, ninguém jamais poderia roubar de Sean Connery. E então desconstrói e reconstrói James Bond como um ícone acossado pelo medo da superfluidade, atormentado por uma relação freudiana com uma mulher (bem) mais velha, e de sexualidade mais colorida do que se poderia supor.
O legado: O momento mágico em que um ator se apaixona pelo seu personagem – e é plenamente correspondido.
26. A Conversação
Tentei reservar no máximo um título para cada cineasta, mas não teve jeito: rever este filme magnífico é constatar que, durante um período, não havia diretor que chegasse perto de Francis Ford Coppola, nem ator mais completo que Gene Hackman – que, aqui, é um especialista em “grampos” e outras variedades de espionagem sonora. Harry é paranoico, sim. Mas, dadas as iluminações que o trabalho lhe proporciona sobre a natureza humana, ele bem que tem razão em sê-lo.
O legado: No meio de um filme perfeito, uma das mais espetaculares cenas da história do cinema: a cada nova audição da conversa que gravou entre duas pessoas, em uma praça movimentada, Harry depreende uma interpretação diferente do que foi dito. Onde estará a verdade, afinal?
27. Tempo de Viver
Quando os cineastas chineses da “quinta geração” estouraram no circuito internacional, na virada dos anos 80 para os 90, ninguém filmava de maneira tão luxuriante quanto eles. Tempo de Viver, de Zhang Yimou, é uma boa escolha porque abrange boa parte da história da China no século 20 por meio das fortunas e, depois, desventuras de um casal magistralmente interpretado por Gong Li e Ge You – e porque tem aquele cardápio irresistível de sofrimento sem fim, costumes exóticos, música mais exótica ainda e visual suntuoso.
O legado: Uma lição sobre como fazer algo antigo – o melodrama – parecer novo mais uma vez. Além do mais, tem dias em que só um pouco de melô resolve.
28. Cidade de Deus
Desde a primeira cena, em que uma galinha observa aflita o massacre de suas colegas para um churrasquinho e então, zás, foge e vira alvo de uma perseguição atordoante, Cidade de Deus enlouqueceu plateias pelo mundo: uma visão rascante de um mundo (des)governado pelo tráfico, feita com medidas iguais de crueza, suingue e humor, esta adaptação do livro de Paulo Lins é um filme que pode ser visto dez vezes, e surpreender em todas elas.
O legado: O Brasil não é para iniciantes, já se disse. Mas Cidade ajuda a entender a barafunda.
29. O Senhor dos Anéis
Estou só obedecendo o diretor Peter Jackson: ele é quem diz que fez um só filme, dividido em três partes. E que filme: em matéria de fantasia, não dá para bater isto aqui em concepção, elenco, visual, música, paisagem e ambição pura e simples. É literalmente como ver os livros de J.R.R. Tolkien ganhando vida, tal e qual.
O legado: Se hoje já seria financeiramente inviável repetir o feito de Jackson, que dirá em um mundo pós-apocalipse. É guardar para não perder.
30. Orgulho e Preconceito
Sem Jane Austen não dá para viver. Então, representando todas as dezenas de adaptações da obra dela, aí vai este trabalho vivo, alegre e palpitante do diretor Joe Wright, com Matthew Macfadyen como o mais apaixonante e exasperante de todos os Mr. Darcy, Keira Knightley como a mais travessa e teimosa de todas as Lizzie Bennett e o baile provinciano mais barulhento e suarento de toda a ilustre história do cinema de época inglês.
O legado: Jane Austen, ora. Precisa mais?
31. Uma História de Violência
Viggo Mortensen é um homem de bem: ama a mulher, trata os filhos com respeito e carinho, sai do seu caminho para ser gentil com conhecidos e desconhecidos. Mas, quando dois homens entram na sua lanchonete cheia ameaçando assassinar e estuprar, ele mata ambos, em um segundo, com a proficiência de quem já matou muito antes. Qual a diferença entre ser e tornar-se, o que define a identidade, qual o efeito que uma alteração nesse jogo pode ter sobre os outros? David Cronenberg, um dos diretores mais inquietos e inquietantes que o cinema já produziu, encontrou seu par perfeito em Mortensen. Juntos, eles são um estrondo.
O legado: Um dos mais potentes retratos já feitos do “eu” secreto que cada um carrega consigo. (E o certo seria dar uma trapaceada e incluir o filme seguinte de Mortensen e Cronenberg, Senhores do Crime, que trata do inverso: um homem mau que é secretamente bom.)
32. O Exterminador do Futuro e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final
Sim, eu sei que estou trapaceando (de novo) e colocando dois filmes no lugar de um. Mas veja bem: no primeiro, ninguém sabia ainda do que James Cameron era capaz – só o próprio Cameron. No segundo, a gente achava que sabia – e ele mostrou que ninguém sequer fazia ideia.
O legado: Quanto mais o tempo passa, mais instigante fica a visão de Cameron sobre as armadilhas da simbiose entre homens e máquinas. Além do quê, dois filmaços.
33. A Era do Rádio
O mais amoroso de todos os filmes de Woody Allen recria a infância dele por meio de uma família judia briguenta do Queens, nos anos 30 e 40. É uma tirada impagável atrás da outra, e a trilha sonora é de morrer de tão boa. Mas só por uma cena já valeria: a garota de toalha enrolada na cabeça imitando Carmen Miranda e dublando Tico Tico no Fubá (na verdade, cantada por Denise Dumont) é um dos momentos mais felizes que já tive em uma sala de cinema.
O legado: O passado, na memória, é sempre lindo – inclusive quando se lembra do que era feio.
34. Cenas de um Casamento
A rigor, foi feito como minissérie para a TV – mas, fora da Suécia, todo mundo viu em formato de filme a história de Marianne e Johann, que começa aos dez anos de casamento e atravessa outros dez anos de sismos, traições, separações, reencontros. As interpretações de Liv Ulmann e Erland Josephson, atores-símbolo de Ingmar Bergman, são superlativas. E é fato: nenhum outro cineasta jamais compreendeu tão bem quanto Bergman como as pessoas que se amam sabem onde ferir uma à outra de forma a causar mais dano.
O legado: Um lampejo apenas, dentre uma obra vasta, da capacidade de um diretor de filmar o íntimo humano como se fosse uma paisagem a desbravar.
35. Los Angeles – Cidade Proibida
Uma adaptação heróica do livro noir de James Ellroy, com quase 200 personagens, sobre policiais corruptos, policiais honestos, políticos inescrupulosos, prostitutas, femmes fatales, crime organizado e escândalos dos bastidores de Hollywood nos anos 40, tudo loucamente interligado. Russell Crowe e Guy Pearce formam uma dupla formidável.
O legado: Como escolher apenas um noir entre tantos exemplos brilhantes filmados na década de 40? Usando um pequeno ardil, e ficando com um noir que olha para trás e pesca nesse mar tudo que se fez de melhor.
36. Era Uma Vez em Tóquio
É a simplicidade absoluta: um casal de avós vai visitar a família em Tóquio. Os filhos e netos, porém, não têm tempo nem paciência para eles. Eles voltam para casa; dentro de alguns dias, a avó morre. Yasujiro Ozu, um dos talentos mais cintilantes de todos os tempos, se esquiva de tudo que poderia ser convencional nesse enredo. Não há brigas, não há crises, não há momentos decisivos; o tempo simplesmente transcorre. Mas a potência do que ele obtém é espantosa; é lembrar do filme e sentir um aperto no coração por cada instante que se perdeu, ou no qual que se foi menos do que se poderia ser.
O legado: Olhar a própria mortalidade de frente não é fácil. Mas Ozu, sem tirar dessa experiência o peso, torna-a única.
37. O Hospedeiro
Uma coisa meio bagre, meio dinossauro sai do Rio Han, em Seul, e leva a filha do trapalhão Park (o único e inimitável Kang-ho Song). É filme de monstro? É pastelão? É drama? É uma meditação? É tudo isso e muito mais: é uma maravilha feita por Joon-ho Bong, o maior entre os grandes diretores sul-coreanos.
O legado: Neste momento, não há cinema mais excitante, original e cheio de emoção do que o feito pelos coreanos. Como só eles sabem essa receita, é melhor guardá-la com cuidado.
38. A Princesa Prometida
O diretor Rob Reiner, segunda geração da melhor comédia americana (seu pai é o grande Carl Reiner), fez aqui um pequeno milagre: um filme que funciona igualmente bem como conto-de-fadas e como paródia com senso de humor absurdista de um conto-de-fadas.
O legado: Um dos melhores dois-em-um à disposição – e alguma fantasia e muito senso de humor sempre serão necessários.
39. O Império Contra-Ataca
Não é só por consideração aos outros sobreviventes que eu salvaria algo de Star Wars. É porque tenho uma lembrança tão vívida do meu assombro com os Empire Walkers, gigantescos, andando sobre o gelo e fazendo a sala de cinema tremer, que até hoje a ideia de Luke enroscando as pernas deles e os fazendo tombar me dá um arrepio bom. O diretor Irvin Kershner fez uma façanha: um filme do meio que é melhor do que as pontas da trilogia.
O legado: Como …E o Vento Levou não entrou na lista e assim se perdeu uma das mais célebres frases canalhas da história (“Francamente, querida, não dou a mínima”, diz Clark Gable para Vivien Leigh), pelo menos um outro exemplar ilustre fica preservado: “I love you”, diz Leia para Solo. “I know”, responde o safado.
40. Vá e Veja
Em 1943, os nazistas invadem a Bielo-Rússia e submetem os camponeses locais a horrores inomináveis; o pequeno Florya será testemunha e vítima de todos eles. É improvável que haja um outro filme na história do cinema feito com a cólera e a indignação desta obra-prima do diretor Elem Klimov, que em criança sobreviveu ao medonho cerco dos nazistas a Stalingrado.
O legado: Imagino a cara dos meus companheiros de apocalipse ao abrir a minha caixa de DVDs e ver que, entre os míseros quarenta filmes salvos do fim do mundo, estaria o hiper ultra lento O Sacrifício, de Andrei Tarkovski. Mas alguma coisa do magistral cinema russo tinha de entrar na lista – e este aqui concentra aquela combinação única de formalismo, pesar e desespero em que os russos são mestres.