Não é que algum dia tenha faltado trabalho a Bill Pullman. Desde que estreou no cinema, em meados da década de 80, ele conseguiu o que poucos aspirantes à profissão conseguem: viver (no seu caso, muito bem) dos seus proventos como ator (a título de curiosidade, estima-se que apenas 2% dos americanos e ingleses registrados nos sindicatos da categoria atingem esse grau de êxito). Pullman, na verdade, construiu uma ótima carreira. Como coadjuvante ou protagonista, transitou sempre com facilidade por produções grandes (foi um memorável presidente americano em Independence Day, em 1996) e um sem-número de produções mais modestas. Trabalhou com diretores prestigiados como David Lynch (em Estrada Perdida) e Thomas Vinterberg (em Querida Wendy). Há muito tempo, enfim, é um nome reconhecido pelo espectador e assiduamente lembrado por diretores de elenco. O que não se pode dizer é que fosse objeto de qualquer entusiasmo particular — isso até a primeira temporada da série The Sinner estrear na Netflix, em 2017.
+ Compre o livro Pequenas Grandes Mentiras
No papel do detetive de polícia Harry Ambrose, um tipo meio travado e excêntrico que desenvolve relacionamentos não muito ortodoxos com os suspeitos que investiga, Pullman roubou as atenções do que deveria ter sido um veículo para a atriz Jessica Biel, a suspeita em questão naquela primeira leva de oito episódios. Quando a segunda parte foi ao ar, em 2018, com um novo caso e um novo elenco, já estava sacramentado: era Pullman o grande chamariz de The Sinner. A terceira temporada acaba de entrar na Netflix, e não deixa dúvida de que essa afeição especial do público lhe era devida. Enquanto cerca com seu misto de intimidade imprópria e insistência perspicaz um professor de 2º grau (Matt Bomer) que qualquer outro detetive teria descartado — ele era o passageiro no acidente de carro que matou o motorista —, Ambrose mergulha nos seus estranhos estados de alma, que incluem fantasmas do passado, uma reticência desconcertante e algumas taras secretas. The Sinner vem melhorando a olhos vistos a cada temporada, e muito do crédito cabe a Pullman. Com sua atuação cheia de texturas, seu senso de humor oblíquo e seu dom para engajar o espectador, ele faz a série valer o investimento na qualidade do roteiro e da execução.
Não são tão raros os atores que, pela competência e pelo poder de permanência, um dia afinal topam com a chance que transforma sua relação com a plateia. No ano passado, foi a vez de Laura Dern, que frequenta sets desde que nasceu (é filha dos atores Diane Ladd e Bruce Dern), atua desde os 13 anos, foi musa de David Lynch e também um dos principais nomes de uma das franquias de maior bilheteria da história, Jurassic Park. Laura sempre teve fãs. Mas, em 2019, ela estourou. Teve momentos de gênio como Renata, a executiva neurótica que vive na série Big Little Lies; reconfigurou o papel da mãe abnegada no clássico Adoráveis Mulheres; e, sobretudo, arrasou no papel de uma advogada de divórcio em História de um Casamento, pelo qual ganhou o Oscar. Foi uma redescoberta estrondosa — mais ou menos da mesma ordem que a vivida por Toni Collette com o terror Hereditário, ou a que visitou Jeff Daniels a partir da série The Newsroom.
A versatilidade e a persistência afinal renderam dividendos extraordinários também a outro ator que desde os 23 anos é um trabalhador regular do cinema e da TV. O galês Matthew Rhys, 45 anos, entrou na série The Americans como segundo nome, fazendo par com Keri Russell (com quem se casou e teve um filho) na trama sobre um casal de espiões soviéticos que se passam por perfeitos americanos nos Estados Unidos da era Reagan. A série era excepcional, e Rhys impressionou com o misto de repressão e desilusão de seu personagem, que não acredita na “causa” mas segue trabalhando em prol dela. Demonstrou tal bravura que, a certa altura, o eixo do enredo se deslocou sutilmente para ele — e agora a série Perry Mason, que estreou no domingo 21 na HBO, tira partido do talento particular de Rhys para o desencanto, a raiva e o senso de justiça. A produção, luxuosa, se passa nos anos 30, em uma Los Angeles em que a devastação econômica da Grande Depressão convive com o dinheiro vindo do petróleo, a aura de sonho e as devassidões de Hollywood e a brutalidade pela qual a polícia da cidade foi notória. É uma história “de origem”, e mais explícita no sexo, na violência e na sordidez do que os livros escritos por Erle Stanley Gardner a partir de 1933 ou do que a série dos anos 50. E é também a prova de que água mole em pedra dura, de fato, tanto bate até que fura.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.