Uma tragédia acontece e, como qualquer criança, a pequena Estella põe na cabeça ter sido ela a sua causadora. Como nem todas as crianças, porém, Estella sempre demonstrou não apenas inteligência e capacidade de amar, mas também um temperamento rebelde e às vezes agressivo ou até vingativo, do tipo que não leva desaforos para casa e os devolve todos com troco ali na hora — uma personalidade de opostos tão nítidos quanto a cabeleira meio branca, meio negra com que ela nasceu. Agora que Estella está sozinha, largada sem mãe nem endereço na Londres do início dos anos 60, cabe ao acaso decidir qual de seus extremos vai prevalecer. Calha de eles travarem uma trégua: junto de Jasper e Horace, dois garotos órfãos como ela, a menina forma uma família unida e amorosa — ainda que dedicada a golpes e furtos. O trio prospera e se diverte, mas Estella tem um sonho não realizado, o de usar seu talento e criatividade inatos para desenhar moda. De preferência, no ateliê da exigentíssima e implacável Baronesa, rainha inconteste da alta-costura, em cujo caminho ela será colocada pela sorte e por um tanto de mau comportamento. Mas essa não é a primeira vez que os caminhos de Estella (Emma Stone) e da Baronesa (Emma Thompson) se cruzam. E, a partir daqui, vão se emaranhar de vez, com consequências explosivas para as duas e com enorme vantagem para Cruella (Estados Unidos/Inglaterra, 2021), título do filme já em cartaz nos cinemas e também disponível para compra no Disney+.
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Ainda que as narrativas “de origem” se tenham tornado habituais no universo dos super-heróis, a história de como Estella vai se transformar em Cruella de Vil e somar seu fogo à fogueira punk da Inglaterra da virada dos anos 70 para os 80 tem um frescor que foge ao comum e não raro beira a transgressão. Assim como sua protagonista, Cruella testa limites. E, graças ao desempenho formidável das duas Emmas e à direção inquieta do australiano Craig Gillespie (confira a entrevista) — que quatro anos atrás fez um trabalho brilhante com outra mulher complicada em Eu, Tonya —, consegue ir muito além do conceito de “produto” que tem orientado as versões live-action de clássicos da Disney. Cruella tem todas as arestas, fricções e irregularidades necessárias para que um filme ganhe vida e para que se transmita a sensação de que ele foi feito por pessoas, não por um departamento de marketing.
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Comparações com O Diabo Veste Prada e com o Coringa de Joaquin Phoenix são inevitáveis, mas são também tangenciais. Buscando brechas no formato Disney, Gillespie preenche Cruella de cores intensas mas fechadas — os figurinos, é claro, são um prazer à parte —, e faz ele transbordar de música (de Zombies, Nina Simone e Nancy Sinatra a Blondie e The Clash), de momentos esfuziantes e de personagens construídos com apreço pelos atores que os interpretam — Joel Fry e Paul Walter Hauser nos papéis de Jasper e Horace, Mark Strong como uma figura enigmática e John McCrea, estrela do West End londrino, fantástico no papel de um David Bowie de brechó que se converte em uma influência para Estella. Especialista em talhar a bisturi suas personagens, Emma Thompson faz da narcisista Baronesa, que tira sonecas concentradas de exatos nove minutos e tem um olhar que transforma qualquer um em pedra, um deleite perverso — além de uma adversária sob medida para a anárquica, raivosa, inspirada e vivaz Estella/Cruella, interpretada por Emma Stone com aquele despudor e aquela liberdade que ela encontrou em A Favorita e que, espera-se, nunca mais venha a perder. Agora, Cruella finalmente não é mais só a vilã disposta a sacrificar cachorrinhos do desenho 101 Dálmatas e da versão de 1996 com Glenn Close. Mais jovem, ela no entanto cresceu: é uma anti-heroína verdadeira.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740
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