Costumo dar pelo menos uma espiada nas séries novas com adolescentes (que podem ou não ser exclusivamente para adolescentes) na esperança de achar algo que vá além do clichê dos populares x não-populares, mas é difícil. Para cada série criativa e inteligente como Sex Education, outras dez deveriam ir, junto com seus personagens, para o castigo. E eis então que aparece na Netflix a brasileira Boca a Boca e deixa todo mundo no chinelo. Criada por Esmir Filho, diretor do sensacional Os Famosos e os Duendes da Morte, a série em seis episódios despeja o espectador abruptamente na estranha Progresso, uma cidade interiorana que parece ter se isolado de forma muito deliberada do mundo e onde, portanto, a vida dos jovens é controlada de perto pelos pais e pelo colégio – mas com êxito apenas parcial, como se verá. Na manhã seguinte a uma rave clandestina em que todo mundo se beijou, uma garota mostra os sintomas de uma síndrome viral desconhecida – primeiro alucinações, depois uma mancha arroxeada nos lábios, pupilas esbranquiçadas, total desconexão do ambiente e com os sentidos, até…
Extremamente bem filmada (Esmir, que divide a direção dos episódios com a ótima Juliana Rojas, de Trabalhar Cansa, tem um estilo quase abstrato, muito sensorial e exuberante), Boca a Boca intriga e perturba: assim como o longa Corrente do Mal, com o qual tem certa semelhança na premissa, a série reforça a estranheza por meio da normalidade – ou seja, encaminha-se para o terror, ou a ficção científica, recusando as convenções visuais e narrativas de gênero. Nada de sustos, de choques repentinos, de imagens fantasiosas. O mal-estar aqui está na origem, no próprio lugar em que tudo se passa, nas divisões econômicas e sociais intransponíveis de Progresso (que desmente seu nome de todas as maneiras possíveis) e no comportamento dissimulado e conspiratório dos adultos. Esse, na verdade, é o horror que está à espera dos personagens: o de se transformar naquilo que nunca desejaram ser. Para completar, Esmir não precisa fingir que tem sensibilidade pop e geracional, como a maioria dos criadores da séries adolescentes (a trilha, aliás, é nota dez; inclui até uma versão techno de Boi da Cara Preta). Ele a tem de verdade, e essa autenticidade é uma força inestimável para a série, apesar das derrapadas que acometem o quarto e o quinto episódios. Teoricamente, a grande estreia da semana na Netflix é Cursed, uma produção cara, mas tola e aborrecida, que parece ter sido escrita por um algoritmo millennial. A estreia que vale a pena, entretanto, é esta aqui, que entrou quase sem aviso na grade mas deixa impressões fortes.