Demorei a reunir entusiasmo para assistir a Big Little Lies, a minissérie que a HBO lançou algumas semanas atrás: as chamadas deixavam a impressão de uma espécie de Real Housewives com pretensões dramáticas – uma noite de domigo na companhia de um grupo de mulheres que têm tempo e dinheiro de sobra mas vivem infelizes, insatisfeitas ou furiosas em período integral. Fui ver, de qualquer jeito, porque os créditos são impressionantes: Reese Witherspoon, Nicole Kidman, Shailene Woodley, Laura Dern, Alexander Skarsgard e Adam Scott dirigidos por Jean-Marc Valée, de Clube de Compras Dallas e Livre, com roteiro e produção de David E. Kelley (que, na década de 90 até meados dos anos 2000, mandou na TV americana com Picket Fences, Ally McBeal, Chicago Hope e Boston Legal). Pois que tremendo favor eu fiz a mim mesma. Aos quinze minutos do primeiro episódio, eu já estava em estado de dependência química grave. Desde que Mad Men terminou e me deixou órfã eu não me via assim tão enfronhada na vida de um grupo de personagens, e sentindo tanta vertigem diante do abismo em que cada uma delas está pendurada. Mal consigo segurar a ansiedade até o domingo 2 de abril, quando o sétimo e último episódio vai ao ar. (Se você não viu até agora, ainda dá tempo de correr atrás do prejuízo para pegar o final.)
Garanto que não é spoiler, e sim o exato início da história: tamanhas são a rivalidade e a raiva que correm entre as abelhas-rainhas de Monterey, na Califórnia, que uma festa beneficente da escola primária terminou com um assassinato (de quem? Como? Por quê? O espectador não sabe). Os personagens secundários estão dando seus depoimentos à polícia, e eles transbordam inveja, ressentimento, mesquinharia. Nenhum dos protagonistas – vividos pelos atores citados acima – é visto dando seu testemunho. Ou seja, são todos candidatos a vítima ou suspeito(a), e a história pregressa deles vai sendo pinçada e destrinchada a partir das fofocas que os depoentes despejam na sala de interrogatório. O que se sabe é que hostilidades que já vinham de muito tempo, e que até então pareciam corriqueiras, foram amplificadas pela chegada à exclusiva Monterey (30 mil habitantes e renda per capita de centenas de milhares de dólares ao ano) de Jane (Shailene Woodley) e seu filho Ziggy.
Jane não tem grana, é mãe solteira e não conhece ninguém em Monterey. É bem mais jovem que as outras mães. E é colocada ainda mais em evidência quando, ao fim do primeiro dia de aula do primeiro ano primário, Amabella, a filha da insuportável e estridente Renata (Laura Dern, que só no sexto episódio vai mostrar alguma qualidade capaz de redimi-la), aparece com hematomas no pescoço. Algum coleguinha atacou Amabella; a professora faz do acontecido um espetáculo público (a cena, quase um linchamento entre crianças de 6 anos de idade, é chocante). Pressionada, a tímida Amabella culpa Ziggy (o encantador Iain Armitage). Ziggy, um doce de criança, jura que não fez nada – mas a lava já começou a borbulhar entre Jane e Renata, Madeline (Reese Witherspoon) e Celeste (Nicole Kidman), as alfas da comunidade, cujas vidas aparentemente perfeitas irão se revelar consideravelmente imperfeitas à medida que os antagonismos deflagrados pelo incidente entram em erupção e ganham em proporção.
Big Little Lies parte de um material que facilmente se presta ao melodramático e ao vulgar: inveja, disputas de poder, traições, traumas inconfessáveis, segredos guardados entre quatro paredes (alguns deles terríveis). Mas David E. Kelley e Jean-Marc Vallée elevam esse material bem acima do romance da australiana Liane Moriarty que serve de base a eles, e tiram dele algo maravilhoso: um mergulho naquele íntimo que cada personagem esconde até (ou primeiramente) de si mesma. Às vezes, a sensação é de queda livre; cada espiadela por trás da fachada do casamento de Nicole Kidman e Alexander Skarsgard é um momento de medo e sobressalto, e cada visita ao passado de Shailene Woodley vem com a insegurança de uma vida normal que em um instante vira um pesadelo.
O coração de Big Little Lies, porém, é Reese Witherspoon, que trabalhou tão lindamente com o diretor Jean-Marc Vallée em Livre e é também produtora da série. A Madeline que ela interpreta é uma força da natureza (como a própria Reese), e a única entre essas mulheres que investe mais energia em entender o que vale a pena do que em se conformar ao modelo que se espera dela. Madeline constantemente fala ou age antes de pensar, mete os pés pelas mãos e bate a cabeça na parede. Tem uma relação tempestuosa com a filha adolescente, e uma relação estreita e profunda com Chloe, a filha pequena (Darby Camp, uma das mais espantosas atrizes mirins que já vi) – cuja perda inevitável ela já lamenta antecipadamente. Madeline trocou um casamento com um idiota por um casamento com um sujeito bacanérrimo (Adam Scott) – mas não consegue vencer o rancor (ou talvez o ardor) do primeiro marido, nem impedir que ele envenene sua vida. Mas Madeline tem uma vitalidade, uma curiosidade e uma vontade, e também uma capacidade de se ligar aos outros, que fazem dela algo de estupendo.
Não comparei Big Little Lies com Mad Men à toa. Em certa medida, as duas séries tratam de contextos em que tudo parece estar ali para as pessoas serem felizes, e em que a felicidade é quase uma obrigação. À insatisfação que é natural da natureza humana, então, somam-se a frustração e a perplexidade por não se conseguir atingir esse estado. Assim como Mad Men, também, Big Little Lies tem em seu centro uma personagem cuja insatisfação é indecifrável até para ela mesma, mas é também – como deveria ser – seu maior talento e sua maior força. E, ainda como Mad Men e também como Família Soprano, tem um ritmo que é quase psicanalítico, de crise seguida de uma iluminação ou descoberta. Até aqui, não houve episódio que não fosse eletrizante, e também devastador. Nem ouso imaginar, então, como vai ser o final.